Sistema Mundial, transição de hegemonia e o futuro que nos aguarda: quebrar as correntes, colher a flor da vida
Por Ivonaldo Neres-Leite
Devemos ao historiador e sociólogo Immanuel
Wallerstein a formulação do conceito de
Sistema Mundial (ou Sistema-Mundo). Com ele, Wallerstein mostrou que o mundo
está estruturado, em termos de relações de poder, em torno de um conjunto de
países centrais, que comandam a ordem mundial; um bloco de países periféricos,
que são subalternos e dominados de forma (neo)colonial; e um grupo de países
semiperiféricos, que ocupam uma posição intermediária entre a periferia e o centro do Sistema Mundial[1].
Na verdade, Wallerstein deu outro tratamento
à classificação conceitual das relações de poder e de dominação entre países
que havia sido realizada pela Teoria da Dependência. Para esta, o mundo se
divide entre um centro e uma periferia, sendo os países centrais,
basicamente, aqueles que foram colonizadores do continente americano, da
África e da Ásia[2]. Ou
seja, países europeus, mais os Estados Unidos, que, não obstante tenha estado
sob o domínio da Inglaterra, por fatores diversos, tornou-se um país central,
já que era praticamente uma extensão da metrópole, e quando esta perdeu a
hegemonia mundial, foram os estadunidenses quem a herdaram.
Quanto
aos países periféricos, pela definição da Teoria da Dependência, eles
correspondem fundamentalmente às nações latino-americanas, africanas e
asiáticas resultantes da colonização europeia, sob o jugo do escravismo, da
exploração das riquezas locais, do domínio dos povos originários, da imposição
da língua da metrópole, dos seus valores e da sua cultura – inclusive, a
religiosa. Assim, povos africanos e asiáticos passaram a falar francês e
inglês, bem como na América Latina instituiu-se o espanhol e o português. A
periferia é a parte frágil do sistema mundial, empobrecida, ou, como conceituou
o famoso economista paraibano Celso Furtado, em reconhecidos trabalhos
internacionais, é a parte subdesenvolvida do mundo que contrasta com a parte
desenvolvida. É a parte que continua a ser dominada/explorada pelo imperialismo
dos países centrais, sob o comando, após a Segunda Guerra Mundial, dos Estados
Unidos.
Seja na perspectiva de Wallerstein, seja na
da Teoria da Dependência, o fato é que existe um Sistema Mundial onde um
pequeno grupo de países, comandado sobretudo pelos Estados Unidos, impõe ao restante do mundo as visões, as suas
decisões, os projetos, etc. Ou seja, eles têm a hegemonia mundial, o “domínio
do mundo”. Assim, por exemplo, o dólar estadunidense é imposto como moeda a ser usada no comércio internacional,
e a valorização ou desvalorização das moedas de outros países, como o real
brasileiro, tem como referência o dólar.
Ao longo da história, diferentes países têm tido
papéis relevantes e de influência no Sistema Mundial. Por exemplo, o Império
Português, representado pelo fato de Portugal ter sido pioneiro na expansão
ultramarina e por ter tido colônias na África, na Ásia e na América Latina; o
Império Espanhol, também com uma vasta rede de colônias no chamado ‘Novo
Mundo’; e a França, igualmente com uma vasta empresa colonial no continente
americano, na África e na Ásia. Contudo,
nenhum desses países alcançou o grau de domínio sobre o mundo obtido pelo
Império Britânico, pois ele foi o maior Império em extensão de terras
descontínuas do planeta. Por mais de um século, figurou como a principal potencial mundial e, em 1920,
dominava um quarto da população do mundo.
Mas nações dominantes no Sistema Mundial, por
razões diversas, entram crise, e, embora possam continuar tendo alguma posição
de influência, ocorre a transição de hegemonia, isto é, a transição do poder de
domínio, com a hegemonia passando a ser exercida por outro país ou bloco de
países. Foi o que aconteceu com a Inglaterra após Segunda Guerra Mundial,
impactada pelos efeitos do conflito com a Alemanha nazista, assim como boa
parte da Europa. É nesse contexto que os Estados Unidos emergem como nova
potencial internacional, liderando o Sistema Mundial.
A hegemonia estadunidense se estabeleceu tendo
um diferencial que tornou o país um superpoder global. Ela diz respeito, entre
outras coisas: i) ao domínio financeiro
exercido pelo dólar; ii) à supremacia militar, representada por uma imensa e
potente máquina de guerra, que está implantada em cerca de 800 bases militares
espalhadas por 80 países, além de nos próprios Estados Unidos; iii) e refere-se
a uma sofisticada rede de inteligência e espionagem (sendo a CIA a agência mais
conhecida), o que permite ao país espionar até presidentes de outras nações,
como aconteceu com a ex-Presidenta Dilma
Rousseff; iv) concerne ao poder de comando sobre a diplomacia e o governos de
países europeus, do Canadá e do Japão, de modo que o domínio de Washington
significa o domínio do mundo ocidental. Esse superpoder estadunidense lhe tem
permitido, entre outros feitos, invadir países, derrubar governos, tramar
golpes de estado e implantar ditaduras, como as que foram implantadas na
América Latina na segunda metade do século XX, a exemplo da ditadura civil-militar
brasileira (1964-1985), que tanto atingiu os projetos populares no país.
Durante o período em que prevaleceu a
bipolarização mundial entre bloco capitalista e bloco socialista, com o primeiro
sendo liderado pelos EUA e o segundo
pela antiga União Soviética, houve uma certa “contenção tensa” dos propósitos estadunidenses.
Mas, com queda do Muro de Berlim em 1989, o fim da União Soviética e a crise do
socialismo, o seu domínio imperialista passou a se apresentar como
incontrolável.
Mas, repetindo, países dominantes no Sistema
Mundial, por fatores diversos, entram em declínio, iniciando-se uma transição
de hegemonia. E as transições de hegemonia costumam acontecer sob disputas
econômicas, conflitos, guerras, sangue, atingindo todo o mundo. É isso que
muitas análises têm apontado atualmente: o declínio da hegemonia estadunidense
no Sistema Mundial[3], e do
mundo ocidental em geral, com o poder se deslocando para o Oriente e para o Sul Global, onde a China é um protagonista
central. Assim, os conflitos e as
catastróficas guerras que, nos dias atuais, ocorrem mundo afora, como a guerra
da Ucrânia, têm sido relacionadas à essa fase de reconfiguração das relações de
poder no Sistema Mundial e de início de transição da hegemonia em seu interior.
Nessa conjuntura, quais são os cenários para
os povos intensamente dominados e explorados ao longo da história, como os
povos dos países resultantes dos processos de colonização, como é o caso
brasileiro e de nações latino-americanas? Quais são as perspectivas para os
interesses populares? Numa fase de transição da hegemonia no Sistema Mundial,
como a que está sendo anunciada, qual caminho devem tomar os projetos
comprometidos com a construção de processos emancipatórios e libertários?
Marx dizia que a humanidade apenas se coloca problemas que pode resolver, pois o próprio problema não surge a não ser que já existam as condições materiais para a sua resolução, ou, pelo menos, elas estejam em vias de aparecer[4]. Portanto, se tais problemas estão a ser postos pelas questões que acabei de realçar, é porque há horizonte para as respostas. Chegar a elas, contudo, depende de estudo aprofundado e da sua validação teórico-prática, bem como de compromisso com a atitude autocrítica. Afinal, também à maneira marxiana, pode-se dizer que a crítica não arranca as flores imaginárias da corrente para que o ser humano viva acorrentado sem fantasias ou consolo, mas para que ele quebre a corrente e colha a flor da vida.
[1] WALLERSTEIN, Immanuel. The modern world-system, v. I e II. Los Angeles: University of California Press, 2011.
[2] DOS SANTOS, Theotonio. La teoría de la dependencia: balance y perspectivas. Buenos Aires: Plaza & Janés, 2003.
[3] GWADABE, Nasa’i Muhammad; SALLEH, Mohd Afandi; AHMAD, Abdullahi Ayoade. O declínio hegemônico dos Estados Unidos e a crescente influência da China: uma perspectiva crítica sobre a teoria da transição de poder no século XXI. Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais, v. 9, n.18, Jul./Dez. 2020, p.132-153.
[4] MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008.