Matemática e literatura: crônica da mais humana das ciências sendo a mais precisa e a superação da oposição entre humanas e exatas
Por Marcelo Viana (Instituto de Matemática Pura e Aplicada da USP)
Passei o fim de semana na Feira do Livro em São Paulo para o lançamento do meu livro "Histórias da Matemática", antologia de colunas que escrevo na Folha desde 2017. Ocasião para voltar a meditar sobre a relação íntima entre literatura e matemática e a suposta antítese entre "humanas" e "exatas".
Um jornalista conhecido
surpreendeu-se com o livro "agradável de ler" escrito por um
matemático. "Eu achava que nós de humanas sabíamos escrever, e o pessoal
de exatas fazia contas", explicou-me. Já eu gosto de provocar os colegas
com a afirmação enfática de que a matemática é a mais humana das ciências, sem
deixar de ser a mais exata.
A antítese é invenção recente.
Seguindo Platão, o ensino medieval dividia o conjunto
do conhecimento em sete artes, organizadas no trivium (gramática, retórica e
lógica) e no quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia), todas
indispensáveis a uma formação completa. E a fronteira entre matemática e
literatura era difusa.
O persa Omar Khayyam
(1048-1131), a quem é atribuída a coleção de poemas "Rubaiyat", era
matemático: trabalhou na resolução das equações cúbicas e também aprofundou a
discussão do postulado das paralelas de Euclides. O "pai da literatura
inglesa", Geoffrey Chaucer (1343-1400), autor dos "Contos da
Cantuária", também escreveu um "Tratado do Astrolábio". E Lewis
Carroll (1832-1898), autor de "Alice no País das Maravilhas", era
matemático por profissão e ficcionista por passatempo.
Diversos autores lançaram mão
de regras matemáticas para condicionar a narrativa literária, reforçando os
temas do texto. Por exemplo, em "A Vida Modo de Usar", do francês
Georges Perec (1936-1982), a ação se desloca entre os cômodos de um imóvel
parisiense conforme o movimento do cavalo no tabuleiro de xadrez. Mas a
influência mútua também pode ir na direção oposta: na tradição clássica indiana
era comum formular fatos matemáticos na forma de poemas para facilitar a sua
comunicação.
O
matemático inglês G. H. Hardy (1877-1947) entendia o que une a matemática às
artes: "Tal como o pintor ou o poeta, o matemático é um criador de
padrões. Se os seus padrões são mais permanentes é porque são feitos de ideias.
Esses padrões, tais como os do pintor ou do poeta, devem ser belos: as ideias,
tais como as cores ou as palavras, devem se relacionar de forma
harmoniosa".
Sofia
Kovalevskaya (1850-1891), a primeira mulher com doutorado em matemática, foi
além. "É impossível ser matemático sem ter alma de poeta… o poeta precisa
olhar mais fundo, ver o que outros não veem …. e o matemático precisa fazer o
mesmo."
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