Novas perspectivas em Educação Popular e a sua renovação internacional: o caso do Movimento Latino-americano Fé e Alegria
Ivonaldo Leite
(Sociólogo, Universidade Federal da Paraíba/Pesquisador
do CNPq)
Introdução
O
período entre a década de 1990 e os primeiros anos da de 2000, foi marcado por
um significativo impacto resultante do que, de forma mal definida, ficou
conhecida como ‘a crise dos paradigmas e das utopias’. Foi um tempo marcado,
entre outros acontecimentos, pelo
rescaldo da tsunami política que representou
a queda dos regimes ditos socialistas do Leste Europeu, pelo fim da
então União Soviética, pela assunção da ideia de ‘fim da história’ (no sentido
de vitória final do capitalismo), pela ascensão da globalização e pela
hegemonia do neoliberalismo. Nesse terreno, prosperou uma determinada
perspectiva pós-moderna segundo a qual “não existe verdade”, apenas narrativas
diferentes e discursos sobre discursos. Desse modo, teria deixado de fazer
sentido empenhar forças em prol de utopias (classificadas como “ilusórias
metanarrativas”), decorrendo disso, entendia-se, o colapso de escolas de
pensamento que, historicamente, têm o compromisso com a mudança social
registrado no seu cerne.
Essa
realidade impactou o campo da Educação Popular, tendo em vista ela ser
tributária dos projetos de transformação social que animaram corações e mentes
no século XX. Ademais, não parece haver dúvidas de que a sociedade do século
XXI não é a mesma da época em que emergiu a versão clássica da Educação Popular
nos nas 1950/1960. Sob os mais variados aspectos, o mundo de hoje é outro. Como
decorrência do referido contexto de crise e dos novos cenários sociais, teve
lugar na América Latina um debate – que no Brasil foi amplamente desconhecido
ou ignorado – a respeito do futuro da Educação Popular, debate este que, conforme recenseou Mejía (1996),
oscilou entre três posições: i) a que afirmava que a Educação Popular teria
perdido o seu sentido, podendo-se falar de seu fim; ii) a que, diante da nova
conjuntura, assinalava que nada a tinha atingido, devendo então a Educação
Popular continuar repetindo os mesmos
discursos do passado, sem nenhuma alteração; iii) a que enfatizava que o novo
cenário requeria que a Educação Popular fosse refundamentada, sob pena de
tornar-se residual e não dialogar com a efetiva realidade dos setores
populares.
Não
vou aqui denominar os agentes de cada uma dessas posições. Não é o lugar para
isso. Limito-me apenas a realçar elementos que traduzem bem a natureza de tal
debate. Um desses
elementos refere-se a alguns dos títulos dos trabalhos produzidos no ambiente
da discussão, quais sejam: i) Educación Popular hoy: entre su refundamentación
o dissolución (Mejía, 1996); ii) Saldando cuentas con la refundamentación
(Carillo, 2007); iii) Refundamentación político pedagógica
de la Educación Popular en la transición al siglo XXI (Puigrros, 1996); iv)
Educación Popular hoy – en tiempos de globalización (Mejía & Awad, 2007). Outro elemento que pode ser mencionado concerne ao abandono, por
parte de próceres teóricos, relativo a abordagens que eles desenvolveram e que
serviram de referência à Educação Popular. Este é o caso, por exemplo, do
teólogo Clodovis Boff, um dos formuladores da teologia da libertação,
perspectiva essa que serviu (e serve) de
inspiração a muitas ações em Educação Popular. Em 2007, Clodovis Boff realizou
uma autocrítica e fez duros questionamentos à Teologia da Libertação (Boff,
2007), sendo, por outro lado, severamente criticado por seu irmão, também
teólogo, Leonardo Boff, que se disse perplexo com a nova postura de Clodovis e o acusou de estreiteza (Boff, 2008).
Esse foi o cenário gerado, no contexto da Educação Popular
latino-americana, como decorrência da referida ‘crise dos paradigmas e das utopias’. Mas foi
também nesse cenário que, aqueles que pugnavam (e pugnam) pela refundamentação
da Educação Popular’, para assegurar a sua vigência vitalizada, saíram a
terreiro tanto do ponto de vista da formulação teórico-analítica, como da
intervenção na realidade, buscando conhecer/entender os novos fenômenos sociais
e, em face destes, sistematizar novas
modalidades conceituais e de ação concernentes ao fazer educativo popular. Como
resultado disso, nos últimos tempos, diversas experiências inovadoras e de renovação
da Educação Popular têm tido lugar em distintos países da América Latina. As
iniciativas de intervenção em contextos de violência na Colômbia, os
Bachilleratos Populares na Argentina, as ações em prol de uma Educação
Ambiental Popular no México, etc., são exemplos tidos como referência a
respeito.
Nesse ensejo, o histórico Movimento de Educação Popular Integral e
Promoção Social Fé e Alegria ampliou o seu redimensionamento e, das raízes
latino-americanas, expandiu-se a outros continentes. O presente trabalho enfoca
o significado do Movimento Fé e Alegria e a sua perspectiva de Educação
Popular. Trata-se de uma abordagem desenvolvida no âmbito de um já longo
período de estudos e pesquisas, que tenho realizado, sobre as novas
experiências de Educação Popular na América Latina, isto é, sobre o campo dos
temas emergentes em Educação Popular[1].
“Vamos com fé, voltamos
com alegria”: a gênese do Movimento Fé e Alegria, seu escopo e sua perspectiva de Educação Popular
‘Fé
e Alegria começa onde termina o asfalto, onde não há eletricidade, onde não
chega água e onde a cidade perde o seu nome’. Foi sob consignas como essa que,
em 1955, nasceu, na Venezuela, o Movimiento de Educación Popular Fe y
Alegria. Tratou-se de uma ação levada a cabo no contexto da Universidad
Católica Andrés Bello, por iniciativa do jesuíta José Maria Vélaz, inciativa que,
ademais, envolvia estudantes dessa instituição.
Chileno
de origem, Vélaz, na Venezuela, por um
lado, tomou contacto com os bairros populares de Caracas desde a sua chegada ao
país, preocupando-se com a situação social das suas gentes; por outro lado,
entendia que a formação a ser proporcionada pela Universidad Católica Andrés
Bello, independente da área profissional do curso do discente, deveria ter uma
forte dimensão humanista, sensibilizando os estudantes para as necessidades e
problemas da população desfavorecida. Os universitários de Vélaz foram o motor
da sua ação, pois, com o seu empenho, ganharam a confiança das classes
populares, mostrando que as visitas aos bairros “no eran una campaña de esas en que vienen a echar discursos políticos y se
marchan después de conseguir los votos. Estos jóvenes entregaron su
vocación de servir más allá de sus fines de semana; se comprometieron y
forjaron la idea de dar forma a una realidad llamada Fe y Alegría” (Fe y
Alegria, 2004, p. 13).
O fato original que está na instauração da primeira
escola do que viria a ser o Movimento de Educação Popular de Fé e Alegria é bastante
revelador da credibilidade conquistada por Vélaz e os seus estudantes junto aos
setores populares venezuelanos. Um trabalhador da construção civil de um dos
bairros mais empobrecidos de Caracas (Gato Negro) ofereceu a sua própria casa
para funcionar como escola. Chamava-se Abraham Reyes, que descreveu do seguinte
modo o ocorrido:
Por allá llegó una vez […] un curita con un grupo de
muchachos estudiantes de la universidad… querían hacer algo por el barrio;
cuando se encontraron conmigo, por allá en el barrio, me preguntaron cuáles
eran las necesidades del barrio. Yo le dije: hay muchas, pero ahorita la más
urgente es que nosotros no tenemos ni una escuelita. Entonces, ellos buscaron
por allá a ver si hallaban como una casa […] No casa, digamos, eso eran ranchos, ¿no?; entonces, yo andaba con ellos y, bueno: “padre, yo tengo un rancho,
que es como un galpón, es grande, tiene dos locales grandes […] Bueno, están a
la orden para que usted ponga esa escuelita”. Si usted pone las maestras, yo
pongo la casa (Fe y Alegria, 2004, pp 14-15).
Em mais de uma oportunidade, Vélaz
relatou a sua surpresa, admiração e gratidão a Abraham Reyes, assinalando que
um homem empobrecido havia dado um grande exemplo, disponibilizando a sua
própria casa para a escola, casa que havia sido construída com o dinheiro
economizado durante sete anos. E enfatizava Vélaz: “eso nos estremecía de admiración:
como aquel hombre, no solo nos había dado el piso alto para los muchachos, sino
que nos ofrecía su casa, abajo, la sala de la casa para los niños […], y ahí
empezó Fe y Alegría” (ibidem, p. 13). Por sua parte, Abraham Reyes arrematva:
Todos colaboraban; bueno, cada uno puso su granito de
arena; yo puse el primer granito de arena, que fue la casa [..], porque el motor, el hombre entusiasta, fue el
padre Vélaz, fue el fundador de esta obra, nosotros jamás nos imaginamos que
esto iba a crecer, porque fue una cosa tan espontánea, fue una cosa de querer
hacer el bien (ibidem, p. 18).
E de fato, os ‘grãos de areia’ referidos por Abraham Reyes se multiplicaram no contacto com as classes populares, sob o lema “vamos às comunidades com fé e voltamos com alegria”, derivando-se daí a denominação do movimento: Movimento de Educação Popular Fé e Alegria. Ergueu-se do chão da América Latina, espalhou-se pela região e atualmente encontra-se na Europa e na África, abrangendo 22 países, conforme demonstra o quadro 1
Quadro 1: Movimento de Educação Popular Fé Alegria no mundo
América
Latina: países e ano de fundação |
Europa:
países e ano de fundação |
África:
países e ano de fundação |
Venezuela
- 1955 Equador
– 1964 Panamá
– 1965 Bolívia
- 1966 Peru
- 1966 El
Salvador - 1969 Colômbia
- 1971 Nicarágua
- 1974 Guatemala
- 1976 Brasil
- 1981 República Dominicana - 1969 Paraguai - 1992 Argentina - 1996 Honduras - 2000 Chile - 2005 Haiti - 2006 Uruguai – 2008 |
Espanha
- 1985 Itália
– 2001 |
República
do Chad - 2007 Madagascar
- 2013 República
Democrática do Congo – 2014 |
Fonte: Elaboração própria
De resto, o Movimento encontra-se em fase de
ramificação na Ásia (Laos e Camboja), em outros países da África (Quênia,
Nigéria e Guiné-Bissau) e da América Latina (Guiana, Cuba e México). Fé e
Alegria emergiu no período das abordagens clássicas da Educação Popular na América
Latina, nos anos 1950/1960 (onde destacou-se o contributo de Paulo Freire), e desenvolveu-se
fazendo a travessia delas, diante dos novos contextos e fenômenos
contemporâneos, tornando-se um Movimento-Federação Internacional, sendo denominado
hoje Movimento Internacional de Educação Popular Integral e Promoção Social.
Em números gerais, referentes à
sua ação em todo o mundo, o Movimento mostra a sua amplitude. Considerando
dados de 2019-2020, contempla 647.032 estudantes na educação formal e 288.812
participantes em ações de educação não formal, totalizando um público educativo
de 935.844 pessoas (Fe y Alegria, 2020a). O seu corpo funcional soma 40.473
servidores, sendo 29.145 docentes, 9.151 referentes ao pessoal
técnico/administrativo e 2.177 correspondentes aos gestores. Ademais, o
Movimento tem uma rede de rádios educativas implantada em diversos países.
Há vários aspectos que instigam a reflexão e a análise
sobre o Movimento Fé e Alegria. Por exemplo, dois elementos a esse respeito:
por um lado, ser uma experiência ignorada no contexto das abordagens da
Educação Popular no Brasil e, por outro lado, num paradoxo em relação a isso, o fato de o
Movimento se ter revelado um êxito do ponto de vista do seu desenvolvimento e
consolidação, precisamente num tempo, como o atual, em que se verifica, no
cenário brasileiro, um acantonamento dos enfoques tradicionais da Educação
Popular à esfera da repetição das abordagens clássicas, tornando-a residual e
desprovida de potencial aglutinador e mobilizador, pois não dialoga com a nova
agenda de questões que perpassa o cotidiano dos setores populares.
Movimento
Fé e Alegria: reconfiguração teórico-prática da Educação Popular
Da sua origem, marcada pela orientação clássica da
Educação Popular dos anos 1950/1960, o Movimento Fé e Alegria evoluiu no
sentido de reconfigurar o seu escopo programático e de intervenção.
É um movimento porque, para além de uma rede de
escolas e de uma intencionalidade institucional, Fé e Alegria “es una puesta en marcha de un conjunto de ideales
asumidos por personas y sembrados en distintas instancias sociales. Esos ideales convergen en la
necesidad de transformar una sociedad marcada por la injusticia, en cuya raíz
está la discriminación educativa (Baldonedo
V., 1998, p. 131). Quanto à Educação Popular, é entendida como processo
histórico e social de acompanhamento dos setores populares. Neste sentido,
Esta educación popular implica un crecimiento personal y
comunitario, con un desarrollo de la conciencia de las propias potencialidades
y valores, un cambio de contenidos y métodos para captar las necesidades más
hondas de la gente y una modificación de las actitudes para acceder a la toma
de decisiones sobre la propia vida. El desarrollo de capacidades para la
participación plena, consciente, responsable y eficaz es objetivo que se hace
método: en los diferentes niveles de la organización y en cada centro escolar
la participación se orienta a impulsar un proyecto educativo que vaya haciendo
realidad una nueva pedagogía, nuevas relaciones humanas, nuevas relaciones de
poder, nuevas relaciones con el entorno, una nueva escuela para el barrio y con
la gente (ibidem, p. 132).
E a propósito de ser integral, qual é o seu
significado para o Movimento Fé e Alegria? Não parece ter relação com a
forma como o termo tem sido banalizado no Brasil (referente, por exemplo, à
jornada escolar), pois é ressaltado que,
em Fé e Alegria, o integral
se
propone abarcar a la persona en todas
sus dimensiones, posibilidades y capacidades, y se orienta a la consecución de
una mejor calidad de vida, que se expresa en el desarrollo pleno de las
capacidades humanas, en la dignidad, en el género de vida y trabajo, en la toma
de decisiones, en la formación permanente, en la participación en el desarrollo
y en los cambios productivos del país, y en el fortalecimiento de la
democracia. Calidad de vida que alcanza las diversas facetas de la actividad
humana, en las relaciones de la persona consigo misma, con los demás, con los
bienes de la cultura y de la naturaleza y en relación con la trascendencia (Baldonedo V., 1998, p. 132).
Desse ponto de vista, qualidade
de vida passa, necessariamente, pela satisfação das necessidades básicas de
aprendizagem, pelo acesso ao conhecimento sistematizado e pelo atendimento das necessidades
econômicas e sociais. Essa perspectiva foi o que levou o Fé e Alegria a agregar
a expressão promoção social em sua designação.
Especificando e sistematizando a
sua compreensão renovada sobre a Educação Popular, o Movimento parte do
pressuposto segundo o qual vivemos uma mudança de tempo que transforma paradigmas, contextos e sujeitos
da ação educativa, e, assim, as premissas que davam base à Educação Popular e
sustentavam a sua pertinência no século XX não necessariamente garantem a sua
relevância no século XXI. Daí, segundo o Fé e Alegria, é imperativo que se faça
uma análise aprofundada a respeito do marco originário da Educação Popular e se
tenha em atenção a necessidade da realização de uma revisão das suas perspectivas
no tocante às dimensões política, educacional, pedagógica e didática. Nesse
sentido, no âmbito do Movimento, tem sido realçada a relevância de se discutir
temas como ‘a Educação Popular no século XXI’, a ‘Educação Popular diante dos
novos contextos latino-americaos’ e ‘elementos próprios da Educação Popular no
contexto atual’ (Calderón, 2015).
Em conformidade com os referidos
delineamentos, o Plano Global 2021-2025 de Prioridades do Movimento apresenta
balizas para nortear a sua ação (Fe y Alegría, 2020b). Neste, percebe-se uma
ênfase na necessidade de se considerar elementos como pesquisa, busca por
qualidade, pluralidade e respeito à diversidade, exercício da autocrítica, etc.
A título preliminar, o Plano enfatiza alguns elementos básicos. Por exemplo, sobre a Educação
Popular:
Somos Educación Popular, ante todo, porque promovemos una
propuesta ética, política, pedagógica y epistemológica para la transformación
social. Procuramos permanentemente conocer la realidad local, nacional y global
con una mirada crítica, construyendo y mejorando nuestras prácticas. Valoramos
y revitalizamos las culturas y experiencias populares en todo nuestro hacer
(ibidem, p. 12).
Quanto à ideia de movimento:
Fe y Alegría transmite a la
sociedad la apremiante necesidad de trabajar juntos y juntas para erradicar la
probreza, la desiguald, la injusticia y el sufrimiento de las personas
excluidas y empobrecidas. Es este sentido de urgencia el que nos llena de
audacia y creatividad, el que nos lleva continuamente a releer el contexto y
nuestra propia identidad, conduciéndonos más allá de los límites y las
fronteras (Fe y Alegría, 2020b, p. 11). [grifo meu]
Social que nacido e
impulsado por la vivencia de la Fe Cristiana,
frente a situaciones de injusticia, se compromete con
A respeito de
desigualdade e injustiça:
Hacemos una clara opción por
los sectores de la sociedad que sufren pobreza y mayor exclusión. Trabajamos
para empoderar a todas aquellas personas que se les niega el ejercicio de sus
derechos. Esta opción es irrenunciable. Ellas serán siempre el centro de
nuestro actuar. Reflexionamos sobre las causas que originan las situaciones de
injusticia. Nos comunicamos con la sociedad y la sensibilizamos, incidiendo
ante instancias nacionales e internacionales desde el convencimiento de que es
responsabilidad de todos y todas la creación de nuevas estructuras que hagan
posible un mundo más humanizado en el que se reduzca la brecha de la inequidad.
Nuestra lucha por la justicia comienza por defender el derecho a una
educación de calidad como un bien público (ibidem, p. 12). [grifo meu]
A propósito da intervenção na
realidade e da promoção social:
Creemos en la dignidad de las
personas y de las comunidades. Participamos solidariamente con educadores,
educadoras, educandos, familias y otros actores comunitarios en la vida,
problemas y soluciones de la comunidad. Promovemos una relación armónica y
sostenible de la comunidad con su ambiente natural. Trabajamos por tanto con,
desde y para la comunidad, desarrollando sus capacidades y buscando modelos de
desarrollo alternativos para generar procesos de transformación social (ibidem,
p. 12).
Esses elementos preliminares do Plano Global 2021-2025 evidenciam
consistentes sinais de diferença da Educação Popular revisada e propugnada pelo
Movimento Fé e Alegria em relação às abordagens tradicionais da Educação
Popular, que, em muitos contextos, continuam a ser repetidas tal qual nos anos
1950/1960, como se, depois de mais de meio século, as sociedades não tivessem
mudando e as conjunturas permanecessem as mesmas. Um dos aspectos distintivos
da comparação incide, por exemplo, na preocupação com a qualidade dos processos
educativos, dimensão esta que, em versões da Educação Popular meramente
politicistas e embebidas de caldo ideológico, chega até mesmo a ser rejeitada,
sob a alegação de que ‘tudo que diga respeito a discurso sobre qualidade é coisa do neoliberalismo’. Por
certo, um entendimento enviesado e disparatado.
Os sinais de diferenciação na referida comparação se tornam mais acentuados
ainda quando consideramos alguns eixos orientadores definidos pelo Movimento
para o período 2021-2025. Coloco quatro em realce.
O primeiro diz respeito ao que está denominado como Critérios para a
renovação. Assinala-se, a esse respeito,
que se tem em vista fortalecer a perspectiva global do Fé e Alegria,
geando estruturas e modos de proceder que o levem de um Movimento eminentemente
latino-americano a um alcance e perspectiva globais, além de se tornar um ator
mundial em defesa do direito universal à educação de qualidade e em prol da
promoção de uma cidadania global ativa (Fe
y Alegría, 2020b). Ao mesmo tempo, defende-se que a gestão do Movimento,
diferente das organizações tradicionais, seja feita em rede, ou seja, uma
gestão federada entre as secções nacionais do Fé e Alegria, com isso
significando “aprovechar las potencialidades de flexibilidades y renovación
permanente que permite la lógica de redes [...], promoviendo el discernimiento
permanente de los desafíos del contexto” (ibidem, p. 9).
O segundo eixo é intitulado Nível
estratégico, e é descrito a partir da definição de alguns pontos, como:
i) Potencializar a qualidade educativa, com inclusão
social, promovendo uma cultura institucional voltada a esse fim e implementando
iniciativas de inovação educativa que considerem a formação para o trabalho
digno.
ii) Desenvolver
iniciativas que contribuam para inserção social e laboral de pessoas vítimas de
violência, discriminação e novas formas de exclusão, a exemplo da exclusão
imigrante, bem como dedicar uma atenção especial à infância.
iii) Desenvolver
propostas de acompanhamento socioafetivo para a busca e construção de sentidos
na vida pessoal e comunitária.
iv) Construir e
posicionar novas narrativas de vida comum, impulsionando mudança de valores na
sociedade, procurando acompanhar, neste sentido, as juventudes como fator
central de renovação ética e cultural.
v) Dinamizar e renovar
as modalidades dos vínculos com as comunidades diante das mudanças nas
realidades locais.
O terceiro eixo é designado Um modo de proceder, e concerne ao
escopo organizacional do Fé e Alegria. Está estruturado em três níveis: i)
atuação em rede, articulando hierarquia
e colaboração; ii) fortalecimento de vínculos, tendo como variáveis, dentre
outras, cuidado com as pessoas e criação de sentido intersubjetivo; iii)
perspectiva global, referindo-se a delineamentos como: dinamismo e tensão
criativa entre o local e o global, ação local com perspectiva universal e ação
global para transformação estrutural.
Last but not least, o quarto eixo, apresentado sob a rubrica Políticas
federadas, aponta diretrizes do Fé e Alegria, como federação, para as suas
secções nos diversos países. Dentre as diretrizes apontadas, estão:
i) Adotar uma postura
relativa à Educação Popular que preze por sua análise e atualização, partindo
de “una autocrítica permanente para reconocer excesos,
ausencias, limitaciones e incoherencias que distorsionan las maneras de
analizar la realidad e impiden la búsqueda de alternativas para transformarla”
(Fe y Alegría, 2020b, p. 28)
ii) Assumir um posicionamento em defesa da qualidade
educativa, entendida como perspectiva que: a) pelo acesso ao conhecimento
sistematizado, contribui para o desenvolvimento de sujeitos livres, com
capacidades para incidir na melhoria da sua vida e na transformação do seu
entorno; b) desenvolve a integralidade formativa, isto é, a formação integral, “que forma a todas las personas y a
toda la persona - razón, corazón
y espíritu -,
coordinando e integrando saberes de diferentes escenarios” (ibidem, p.28); c)
busca os melhores meios e recursos didáticos
para o êxito das ações educativos; d) reconhece a importância dos
processos avaliativos, incentivando avaliações multiformes e diversificadas.
iii) Desenvolver a formação permanente dos educadores e
educadoras, centrada na reflexão de sua prática cotidiana, através de
estratégias que fomentem a revisão e (re)avaliação de trajetórias profissionais.
Nesse sentido, entende Fé e Alegria, “resulta
pertinente introducir en los procesos formativos modalidades investigativas
emblemáticas de la Educación Popular como la Investigación Acción Participativa
– IAP -, la recuperación crítica de la historia o la sistematización de
experiencias en-marcadas en la autorreflexión siempre orientada hacia la
acción” (ibidem, p. 29).
iv) Formular propostas
de prevenção à violência escolar e de atuação perante casos em que ela ocorra. Trata-se, enfatiza o Movimento, de estabelecer pautas comuns e orientações
básicas “para la protección integral de los niñas, niños, adolescentes y
jóvenes beneficiarios de los servicios que presta Fe y Alegría a nivel nacional
e internacional, ante la presencia de situaciones de violencia, en sus
diferentes tipos y modalidades” (ibidem, p. 31).
Neste último caso, Fé e Alegria tem efetivamente empreendido esforços para,
com base em evidência científica e tendo presente dimensões da Educação
Popular, estruturar modalidades de enfrentamento da violência escolar. Nesse
sentido, é de se referir uma proposta chancelada pelo Movimento: O Modelo
Dialógico de Prevenção e Resolução de Conflitos. Trata-se de um modelo, realça Fé e Alegría (2022, p. 7), com “sólida base científica en
consonancia con las teorías internacionales que hacen hincapié en dos factores
clave para el aprendizaje en la sociedad actual: la interacción y la
participación de la comunidad”. Assinala-se que é uma proposta que “puede
llevarse a cabo en cualquier otro centro escolar, [e que] la clave para su
éxito es mantener su base científica y todos los elementos que definen al
modelo” (Fe y Alegría, 2022, p. 24).
Do conjunto das abordagens aqui
desenvolvidas, infere-se que o Movimento de Educação Popular Integral e
Promoção Social Fé e Alegria tem realizado uma reconfiguração das
perspectivas da Educação Popular que amplia a sua base programática diante das
mutações societais atuais, além de ter assumido a educação formal (a escola)
como uma esfera formativa central. Por outro lado, tal ampliação tem
contribuído para o êxito da expansão do Fé e Alegria, levando-o a fincar raízes
em diversos países de diferentes continentes. A ênfase na necessidade de tratar
com atenção o fator qualidade nos processos educativos e o realce na imprescindibilidade
da adoção de base científica nas formulações e ações da Educação Popular
constituem aspectos que, de certa forma, marcam um diferencial do Movimento em
relação a determinadas visões panfletárias, superficiais e enviezadamente
ideologizadas da Educação Popular. Que, de resto, tendem a se repetir no
isolamento de nichos, pela incapacidade (e indisposição) de dialogarem com a
diversidade de questões que perpassam o cotidiano e o universo
axiológico-simbólico dos setores populares. Não raramente, distorcem o
significado do popular e caem no populismo.
É paradigmático da ampliação de
perspectivas do Movimento Fé e Alegria a sua estruturação em rede e a sua vida
orgânica articulada com as chamadas iniciativas. Isto é, ele funciona em
rede, com a particularidade de que as redes em seu interior são múltiplas, com
caráter diverso e alcance diferenciado: há redes locais, por países ou regiões,
redes como federação, redes globais, etc. As redes demandam a manutenção de
pontos de vista comuns, pressupõem uma
cultura de colaboração e dependem de visões com capacidade de liderança. São
instâncias de ação e de gestão, combinando horizontalidade e verticalidade no
trato administrativo. Fortalecem a missão conjunta de cada país/região, fazendo
com que a voz de cada lugar seja escutada de forma mais rápida e ágil.
Do ponto de vista temático, as redes
desdobram-se nas referidas iniciativas, ou seja, um conjunto de temas
que, pelo seu conteúdo, agrega pessoas das secções de Fé e Alegria de
diferentes países. Esses temas são bastante ilustrativos da amplitude do
enfoque da Educação Popular assumido pelo Movimento. São eles: Formação
pedagógica, qualidade educativa, avaliação e aferição de impacto, ecologia
integral, formação para o trabalho, juventudes, cidadania, gênero, educação
inclusiva, identidade e espiritualidade, migração, infância.
Dessa forma, com o horizonte
programático assumido pelo Movimento de Educação Popular Integral e Promoção
Social Fé e Alegria, pode-se entender a Educação Popular “como una sola categoria que agrupa dentro de sí a la
educación y a todo lo que implica lo popular sin tratar de definir dichos
conceptos por separado y por sí mismos” (Calderón, 2016, p. 65). Isso implica
dizer, teórica e praticamente, que é atinente à esfera da Educação Popular
todos os fenômenos que emergem e perpassam o meio popular, a vida material e
simbólica das suas gentes, as dinâmicas socais, econômicas, políticas e
culturais que lhes envolvem, etc.
Portanto, como tem mostrado a
práxis renovada do Fé e Alegria, a Educação Popular não é apanágio de
abordagens e temas que são repetidos à exaustão. É isso que faz com que, por
exemplo, Fé e Alegria seja um movimento-rede latino-americano, com dimensão internacional,
“que adquiere características propias en los lugares en los que la red se
inserta” (Calderón, 2015, p. 101).
Conclusão
Na incursão aqui desenvolvida,
coloquei em evidência um panorama do Movimento Internacional de Educação
Popular Integral e Promoção Social Fé e Alegria. Procurei enfatizar que o êxito da sua expansão e
consolidação decorre, entre outros fatores, de ele, ao mesmo tempo que se
mantém situado no marco originário da Educação Popular da sua fundação, ter
adotado uma perspectiva que assume a necessidade de renová-la tanto do ponto de vista teórico como da sua
intervenção, isto é, prático, tendo em atenção os diversos fenômenos e desafios
que têm perpassado o universo existencial dos setores populares já há algum
tempo. Como decorrência disso, Fé e Alegria, por um lado, tem atuado fortemente
no âmbito da educação escolar, e, por outro lado, tem diversificado
extensamente os temas e questões que são objeto de seu enfoque. Na América
Latina, na Europa, na África e, atualmente ramificando-se, na Ásia.
Contudo, há que se ressaltar que,
como proposta de Educação Popular, o Movimento concebe a educação formal de
modo diferenciado: a instituição escolar deve ser um centro educativo comunitário,
quer dizer, mais do que escola. Nesse sentido, a proposta de Fé e Alegria
promove a integração da escola com os agentes coletivos e individuais locais,
abrindo-a à comunidade. “De este modo, se propone un cambio del concepto de
escuela, que hace pensar fundamentalmente en niños y jóvenes que van a oír
clases, por el de Centro Educativo Comunitario donde se promueven diversos
programas educativos y de desarrollo social para los padres y demás miembros de
la comunidad” (Baldonedo V., 1999, p. 132).
A transformação da escola em um
centro comunitário implica um longo processo que tem a ver, por exemplo, com a
definição dos conteúdos, com a função que devem desempenhar os pais, com o
desenvolvimento de atividades não propriamente escolares, em sentido estrito,
mas que são atividades de interesse das comunidades. Assim, na perspectiva de Fé e Alegria, “la
escuela se va transformando en un centro comunitario de producción cultural, de
organización de la comunidad y, también, en un espacio para enfrentar y
resolver solidariamente los problemas que afectan a las comunidades” (Baldonedo
V., 1999, p. 133).
Há, por certo, questões a serem
escrutinadas analiticamente na prática da rede educativa do Movimento. Pode-se
indagar, entre outras coisas, sobre a existência de eventuais diferenças
programáticas, comparativamente, nas ações desenvolvidas nos distintos países,
assim como também pode-se perguntar sobre se o grau de efetividade das
propostas de Fé e Alegria, em termos concretos, é o mesmo nos variados locais
ou se há discrepâncias.
Seja como for, parece não haver
dúvida de que o Movimento de Educação Popular Integral e Promoção Social Fé e
Alegria emergiu do chão latino-americano onde o asfalto terminava, onde não
havia eletricidade, onde a água não chegava e a cidade perdia o nome, e
expandiu-se pelo mundo afora imbuído daqueles mesmos propósitos que, nos anos
1950, moveram o jesuíta José Maria Vélaz, na Venezuela, junto com os
seus estudantes da Universidad Andrés Bello e com o operário Abraham Reyes.
Referências
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[1] Em tal sentido, tenho me
beneficiado significativamente seja de estadias acadêmicas, seja de
interlocuções relativas a países como Argentina, Uruguai, Chile, Colômbia,
Peru, Bolívia, entre outros. Registro a minha gratidão às instituições que me
têm recebido, a exemplo do Departamento de Sociologia da Facultad de Ciencias
Sociales de la Universidad de la República/Montevideo. De igual modo, consigno
o meu agradecimento às instituições que, de diferentes modos, têm auspiciado as
minhas pesquisas, como o CNPq, a Fundación Carolina, a Universidade Federal de
Pernambuco e a Universidade Federal da Paraíba.