Novas perspectivas em Educação Popular e a sua renovação internacional: o caso do Movimento Latino-americano Fé e Alegria



Ivonaldo Leite

 (Sociólogo, Universidade Federal da Paraíba/Pesquisador do CNPq)

Introdução

O período entre a década de 1990 e os primeiros anos da de 2000, foi marcado por um significativo impacto resultante do que, de forma mal definida, ficou conhecida como ‘a crise dos paradigmas e das utopias’. Foi um tempo marcado, entre outros acontecimentos,  pelo rescaldo da tsunami política que representou  a queda dos regimes ditos socialistas do Leste Europeu, pelo fim da então União Soviética, pela assunção da ideia de ‘fim da história’ (no sentido de vitória final do capitalismo), pela ascensão da globalização e pela hegemonia do neoliberalismo. Nesse terreno, prosperou uma determinada perspectiva pós-moderna segundo a qual “não existe verdade”, apenas narrativas diferentes e discursos sobre discursos. Desse modo, teria deixado de fazer sentido empenhar forças em prol de utopias (classificadas como “ilusórias metanarrativas”), decorrendo disso, entendia-se, o colapso de escolas de pensamento que, historicamente, têm o compromisso com a mudança social registrado no seu cerne. 

Essa realidade impactou o campo da Educação Popular, tendo em vista ela ser tributária dos projetos de transformação social que animaram corações e mentes no século XX. Ademais, não parece haver dúvidas de que a sociedade do século XXI não é a mesma da época em que emergiu a versão clássica da Educação Popular nos nas 1950/1960. Sob os mais variados aspectos, o mundo de hoje é outro. Como decorrência do referido contexto de crise e dos novos cenários sociais, teve lugar na América Latina um debate – que no Brasil foi amplamente desconhecido ou ignorado – a respeito do futuro da Educação Popular, debate  este que, conforme recenseou  Mejía (1996),  oscilou entre três posições: i) a que afirmava que a Educação Popular teria perdido o seu sentido, podendo-se falar de seu fim; ii) a que, diante da nova conjuntura, assinalava que nada a tinha atingido, devendo então a Educação Popular  continuar repetindo os mesmos discursos do passado, sem nenhuma alteração; iii) a que enfatizava que o novo cenário requeria que a Educação Popular fosse refundamentada, sob pena de tornar-se residual e não dialogar com a efetiva realidade dos setores populares.

Não vou aqui denominar os agentes de cada uma dessas posições. Não é o lugar para isso. Limito-me apenas a realçar elementos que traduzem bem a natureza de tal debate. Um desses elementos refere-se a alguns dos títulos dos trabalhos produzidos no ambiente da discussão, quais sejam: i) Educación Popular hoy: entre su refundamentación o dissolución (Mejía, 1996); ii) Saldando cuentas con la refundamentación (Carillo, 2007); iii) Refundamentación político pedagógica de la Educación Popular en la transición al siglo XXI (Puigrros, 1996); iv) Educación Popular hoy – en tiempos de globalización (Mejía & Awad, 2007). Outro elemento que pode ser mencionado concerne ao abandono, por parte de próceres teóricos, relativo a abordagens que eles desenvolveram e que serviram de referência à Educação Popular. Este é o caso, por exemplo, do teólogo Clodovis Boff, um dos formuladores da teologia da libertação, perspectiva essa que serviu (e serve)  de inspiração a muitas ações em Educação Popular. Em 2007, Clodovis Boff realizou uma autocrítica e fez duros questionamentos à Teologia da Libertação (Boff, 2007), sendo, por outro lado, severamente criticado por seu irmão, também teólogo, Leonardo Boff, que se disse perplexo com a nova postura de Clodovis e o acusou de estreiteza (Boff, 2008).

Esse foi o cenário gerado, no contexto da Educação Popular latino-americana, como decorrência da referida  ‘crise dos paradigmas e das utopias’. Mas foi também nesse cenário que, aqueles que pugnavam (e pugnam) pela refundamentação da Educação Popular’, para assegurar a sua vigência vitalizada, saíram a terreiro tanto do ponto de vista da formulação teórico-analítica, como da intervenção na realidade, buscando conhecer/entender os novos fenômenos sociais e, em face destes, sistematizar  novas modalidades conceituais e de ação concernentes ao fazer educativo popular. Como resultado disso, nos últimos tempos, diversas experiências inovadoras e de renovação da Educação Popular têm tido lugar em distintos países da América Latina. As iniciativas de intervenção em contextos de violência na Colômbia, os Bachilleratos Populares na Argentina, as ações em prol de uma Educação Ambiental Popular no México, etc., são exemplos tidos como referência a respeito.

Nesse ensejo, o histórico Movimento de Educação Popular Integral e Promoção Social Fé e Alegria ampliou o seu redimensionamento e, das raízes latino-americanas, expandiu-se a outros continentes. O presente trabalho enfoca o significado do Movimento Fé e Alegria e a sua perspectiva de Educação Popular. Trata-se de uma abordagem desenvolvida no âmbito de um já longo período de estudos e pesquisas, que tenho realizado, sobre as novas experiências de Educação Popular na América Latina, isto é, sobre o campo dos temas emergentes em Educação Popular[1].  

“Vamos com fé, voltamos com alegria”: a gênese do Movimento Fé e Alegria, seu escopo  e sua perspectiva de Educação Popular

‘Fé e Alegria começa onde termina o asfalto, onde não há eletricidade, onde não chega água e onde a cidade perde o seu nome’. Foi sob consignas como essa que, em 1955, nasceu, na Venezuela, o Movimiento de Educación Popular Fe y Alegria. Tratou-se de uma ação levada a cabo no contexto da Universidad Católica Andrés Bello, por iniciativa do jesuíta José Maria Vélaz, inciativa que, ademais, envolvia estudantes dessa instituição.

Chileno de origem, Vélaz, na Venezuela,  por um lado, tomou contacto com os bairros populares de Caracas desde a sua chegada ao país, preocupando-se com a situação social das suas gentes; por outro lado, entendia que a formação a ser proporcionada pela Universidad Católica Andrés Bello, independente da área profissional do curso do discente, deveria ter uma forte dimensão humanista, sensibilizando os estudantes para as necessidades e problemas da população desfavorecida. Os universitários de Vélaz foram o motor da sua ação, pois, com o seu empenho, ganharam a confiança das classes populares, mostrando que as visitas aos bairros “no eran una campaña de esas en que vienen a echar discursos políticos y se marchan después de conseguir los votos. Estos jóvenes entregaron su vocación de servir más allá de sus fines de semana; se comprometieron y forjaron la idea de dar forma a una realidad llamada Fe y Alegría” (Fe y Alegria, 2004, p. 13).

O fato original que está na instauração da primeira escola do que viria a ser o Movimento de Educação Popular de Fé e Alegria é bastante revelador da credibilidade conquistada por Vélaz e os seus estudantes junto aos setores populares venezuelanos. Um trabalhador da construção civil de um dos bairros mais empobrecidos de Caracas (Gato Negro) ofereceu a sua própria casa para funcionar como escola. Chamava-se Abraham Reyes, que descreveu do seguinte modo o ocorrido:

Por allá llegó una vez […] un curita con un grupo de muchachos estudiantes de la universidad… querían hacer algo por el barrio; cuando se encontraron conmigo, por allá en el barrio, me preguntaron cuáles eran las necesidades del barrio. Yo le dije: hay muchas, pero ahorita la más urgente es que nosotros no tenemos ni una escuelita. Entonces, ellos buscaron por allá a ver si hallaban como una casa […]  No casa, digamos, eso eran ranchos, ¿no?; entonces, yo andaba con ellos y, bueno: “padre, yo tengo un rancho, que es como un galpón, es grande, tiene dos locales grandes […] Bueno, están a la orden para que usted ponga esa escuelita”. Si usted pone las maestras, yo pongo la casa (Fe y Alegria, 2004, pp 14-15).

 

Em mais de uma oportunidade, Vélaz relatou a sua surpresa, admiração e gratidão a Abraham Reyes, assinalando que um homem empobrecido havia dado um grande exemplo, disponibilizando a sua própria casa para a escola, casa que havia sido construída com o dinheiro economizado durante sete anos. E enfatizava Vélaz: “eso nos estremecía de admiración: como aquel hombre, no solo nos había dado el piso alto para los muchachos, sino que nos ofrecía su casa, abajo, la sala de la casa para los niños […], y ahí empezó Fe y Alegría” (ibidem, p. 13). Por sua parte, Abraham Reyes arrematva:

                                  

Todos colaboraban; bueno, cada uno puso su granito de arena; yo puse el primer granito de arena, que fue la casa [..],  porque el motor, el hombre entusiasta, fue el padre Vélaz, fue el fundador de esta obra, nosotros jamás nos imaginamos que esto iba a crecer, porque fue una cosa tan espontánea, fue una cosa de querer hacer el bien (ibidem, p. 18).

 

E de fato, os ‘grãos de areia’ referidos por Abraham Reyes se multiplicaram no contacto com as classes populares, sob o lema “vamos às comunidades com fé e voltamos com alegria”, derivando-se daí a denominação do movimento: Movimento de Educação Popular Fé e Alegria. Ergueu-se do chão da América Latina, espalhou-se pela região e atualmente encontra-se na Europa e na África, abrangendo 22 países, conforme demonstra o quadro 1

Quadro 1: Movimento de Educação Popular Fé  Alegria no mundo

América Latina: países e ano de fundação

 

Europa: países e ano de fundação  

África:  países e ano de fundação

Venezuela - 1955

Equador – 1964

Panamá – 1965

Bolívia - 1966

Peru - 1966

El Salvador - 1969

Colômbia - 1971

Nicarágua - 1974

Guatemala - 1976

Brasil - 1981

República

Dominicana - 1969

Paraguai - 1992

Argentina - 1996

Honduras - 2000

Chile - 2005

Haiti - 2006

Uruguai – 2008  

 

 

 

 

Espanha - 1985

Itália – 2001

República do Chad - 2007

Madagascar - 2013

República Democrática do Congo – 2014

Fonte: Elaboração própria

 

De resto, o Movimento encontra-se em fase de ramificação na Ásia (Laos e Camboja), em outros países da África (Quênia, Nigéria e Guiné-Bissau) e da América Latina (Guiana, Cuba e México). Fé e Alegria emergiu no período das abordagens clássicas da Educação Popular na América Latina, nos anos 1950/1960 (onde destacou-se o contributo de Paulo Freire), e desenvolveu-se fazendo a travessia delas, diante dos novos contextos e fenômenos contemporâneos, tornando-se um Movimento-Federação Internacional, sendo denominado hoje Movimento Internacional de Educação Popular Integral e Promoção Social.

Em números gerais, referentes à sua ação em todo o mundo, o Movimento mostra a sua amplitude. Considerando dados de 2019-2020, contempla 647.032 estudantes na educação formal e 288.812 participantes em ações de educação não formal, totalizando um público educativo de 935.844 pessoas (Fe y Alegria, 2020a). O seu corpo funcional soma 40.473 servidores, sendo 29.145 docentes, 9.151 referentes ao pessoal técnico/administrativo e 2.177 correspondentes aos gestores. Ademais, o Movimento tem uma rede de rádios educativas implantada em diversos países.      

Há vários aspectos que instigam a reflexão e a análise sobre o Movimento Fé e Alegria. Por exemplo, dois elementos a esse respeito: por um lado, ser uma experiência ignorada no contexto das abordagens da Educação Popular no Brasil e, por outro lado,  num paradoxo em relação a isso, o fato de o Movimento se ter revelado um êxito do ponto de vista do seu desenvolvimento e consolidação, precisamente num tempo, como o atual, em que se verifica, no cenário brasileiro, um acantonamento dos enfoques tradicionais da Educação Popular à esfera da repetição das abordagens clássicas, tornando-a residual e desprovida de potencial aglutinador e mobilizador, pois não dialoga com a nova agenda de questões que perpassa o cotidiano dos setores populares.

 

Movimento Fé e Alegria: reconfiguração teórico-prática da Educação Popular

 

Da sua origem, marcada pela orientação clássica da Educação Popular dos anos 1950/1960, o Movimento Fé e Alegria evoluiu no sentido de reconfigurar o seu escopo programático e de intervenção.

É um movimento porque, para além de uma rede de escolas e de uma intencionalidade institucional, Fé e Alegria “es una puesta en marcha de un conjunto de ideales asumidos por personas y sembrados en distintas instancias sociales. Esos ideales convergen en la necesidad de transformar una sociedad marcada por la injusticia, en cuya raíz está la discriminación educativa (Baldonedo V., 1998, p. 131). Quanto à Educação Popular, é entendida como processo histórico e social de acompanhamento dos setores populares. Neste sentido,

 

Esta educación popular implica un crecimiento personal y comunitario, con un desarrollo de la conciencia de las propias potencialidades y valores, un cambio de contenidos y métodos para captar las necesidades más hondas de la gente y una modificación de las actitudes para acceder a la toma de decisiones sobre la propia vida. El desarrollo de capacidades para la participación plena, consciente, responsable y eficaz es objetivo que se hace método: en los diferentes niveles de la organización y en cada centro escolar la participación se orienta a impulsar un proyecto educativo que vaya haciendo realidad una nueva pedagogía, nuevas relaciones humanas, nuevas relaciones de poder, nuevas relaciones con el entorno, una nueva escuela para el barrio y con la gente (ibidem, p. 132).

 

E a propósito de ser integral, qual é o seu significado para o Movimento Fé e Alegria? Não parece ter relação com a forma como o termo tem sido banalizado no Brasil (referente, por exemplo, à jornada escolar),  pois é ressaltado que, em Fé e Alegria, o integral

 

se propone abarcar a la persona en todas sus dimensiones, posibilidades y capacidades, y se orienta a la consecución de una mejor calidad de vida, que se expresa en el desarrollo pleno de las capacidades humanas, en la dignidad, en el género de vida y trabajo, en la toma de decisiones, en la formación permanente, en la participación en el desarrollo y en los cambios productivos del país, y en el fortalecimiento de la democracia. Calidad de vida que alcanza las diversas facetas de la actividad humana, en las relaciones de la persona consigo misma, con los demás, con los bienes de la cultura y de la naturaleza y en relación con la trascendencia (Baldonedo V., 1998, p. 132).

 

Desse ponto de vista, qualidade de vida passa, necessariamente, pela satisfação das necessidades básicas de aprendizagem, pelo acesso ao conhecimento sistematizado e pelo atendimento das necessidades econômicas e sociais. Essa perspectiva foi o que levou o Fé e Alegria a agregar a expressão promoção social em sua designação.

Especificando e sistematizando a sua compreensão renovada sobre a Educação Popular, o Movimento parte do pressuposto segundo o qual vivemos uma mudança de tempo que  transforma paradigmas, contextos e sujeitos da ação educativa, e, assim, as premissas que davam base à Educação Popular e sustentavam a sua pertinência no século XX não necessariamente garantem a sua relevância no século XXI. Daí, segundo o Fé e Alegria, é imperativo que se faça uma análise aprofundada a respeito do marco originário da Educação Popular e se tenha em atenção a necessidade da realização de uma revisão das suas perspectivas no tocante às dimensões política, educacional, pedagógica e didática. Nesse sentido, no âmbito do Movimento, tem sido realçada a relevância de se discutir temas como ‘a Educação Popular no século XXI’, a ‘Educação Popular diante dos novos contextos latino-americaos’ e ‘elementos próprios da Educação Popular no contexto atual’ (Calderón, 2015).

Em conformidade com os referidos delineamentos, o Plano Global 2021-2025 de Prioridades do Movimento apresenta balizas para nortear a sua ação (Fe y Alegría, 2020b). Neste, percebe-se uma ênfase na necessidade de se considerar elementos como pesquisa, busca por qualidade, pluralidade e respeito à diversidade, exercício da autocrítica, etc. A título preliminar, o Plano enfatiza alguns elementos básicos. Por exemplo, sobre a Educação Popular:

Somos Educación Popular, ante todo, porque promovemos una propuesta ética, política, pedagógica y epistemológica para la transformación social. Procuramos permanentemente conocer la realidad local, nacional y global con una mirada crítica, construyendo y mejorando nuestras prácticas. Valoramos y revitalizamos las culturas y experiencias populares en todo nuestro hacer (ibidem, p. 12).

 

Quanto à ideia de movimento:

 

Fe y Alegría transmite a la sociedad la apremiante necesidad de trabajar juntos y juntas para erradicar la probreza, la desiguald, la injusticia y el sufrimiento de las personas excluidas y empobrecidas. Es este sentido de urgencia el que nos llena de audacia y creatividad, el que nos lleva continuamente a releer el contexto y nuestra propia identidad, conduciéndonos más allá de los límites y las fronteras (Fe y Alegría, 2020b, p. 11). [grifo meu]

Social que nacido e impulsado por la vivencia de la Fe Cristiana,

frente a situaciones de injusticia, se compromete con

A respeito de desigualdade e injustiça:

 

Hacemos una clara opción por los sectores de la sociedad que sufren pobreza y mayor exclusión. Trabajamos para empoderar a todas aquellas personas que se les niega el ejercicio de sus derechos. Esta opción es irrenunciable. Ellas serán siempre el centro de nuestro actuar. Reflexionamos sobre las causas que originan las situaciones de injusticia. Nos comunicamos con la sociedad y la sensibilizamos, incidiendo ante instancias nacionales e internacionales desde el convencimiento de que es responsabilidad de todos y todas la creación de nuevas estructuras que hagan posible un mundo más humanizado en el que se reduzca la brecha de la inequidad. Nuestra lucha por la justicia comienza por defender el derecho a una educación de calidad como un bien público (ibidem, p. 12). [grifo meu]

 

A propósito da intervenção na realidade e da promoção social:

Creemos en la dignidad de las personas y de las comunidades. Participamos solidariamente con educadores, educadoras, educandos, familias y otros actores comunitarios en la vida, problemas y soluciones de la comunidad. Promovemos una relación armónica y sostenible de la comunidad con su ambiente natural. Trabajamos por tanto con, desde y para la comunidad, desarrollando sus capacidades y buscando modelos de desarrollo alternativos para generar procesos de transformación social (ibidem, p. 12).

 

 

Esses elementos preliminares do Plano Global 2021-2025 evidenciam consistentes sinais de diferença da Educação Popular revisada e propugnada pelo Movimento Fé e Alegria em relação às abordagens tradicionais da Educação Popular, que, em muitos contextos, continuam a ser repetidas tal qual nos anos 1950/1960, como se, depois de mais de meio século, as sociedades não tivessem mudando e as conjunturas permanecessem as mesmas. Um dos aspectos distintivos da comparação incide, por exemplo, na preocupação com a qualidade dos processos educativos, dimensão esta que, em versões da Educação Popular meramente politicistas e embebidas de caldo ideológico, chega até mesmo a ser rejeitada, sob a alegação de que ‘tudo que diga respeito a discurso sobre  qualidade é coisa do neoliberalismo’. Por certo, um entendimento enviesado e disparatado.

Os sinais de diferenciação na referida comparação se tornam mais acentuados ainda quando consideramos alguns eixos orientadores definidos pelo Movimento para o período 2021-2025. Coloco quatro em realce.

O primeiro diz respeito ao que está denominado como Critérios para a renovação. Assinala-se, a esse respeito,  que se tem em vista fortalecer a perspectiva global do Fé e Alegria, geando estruturas e modos de proceder que o levem de um Movimento eminentemente latino-americano a um alcance e perspectiva globais, além de se tornar um ator mundial em defesa do direito universal à educação de qualidade e em prol da promoção de uma cidadania global ativa (Fe y Alegría, 2020b). Ao mesmo tempo, defende-se que a gestão do Movimento, diferente das organizações tradicionais, seja feita em rede, ou seja, uma gestão federada entre as secções nacionais do Fé e Alegria, com isso significando “aprovechar las potencialidades de flexibilidades y renovación permanente que permite la lógica de redes [...], promoviendo el discernimiento permanente de los desafíos del contexto” (ibidem, p. 9).

O segundo eixo é intitulado Nível estratégico, e é descrito a partir da definição de alguns pontos, como:

i) Potencializar a qualidade educativa, com inclusão social, promovendo uma cultura institucional voltada a esse fim e implementando iniciativas de inovação educativa que considerem a formação para o trabalho digno.

ii) Desenvolver iniciativas que contribuam para inserção social e laboral de pessoas vítimas de violência, discriminação e novas formas de exclusão, a exemplo da exclusão imigrante, bem como dedicar uma atenção especial à infância.

iii) Desenvolver propostas de acompanhamento socioafetivo para a busca e construção de sentidos na vida pessoal e comunitária.

iv) Construir e posicionar novas narrativas de vida comum, impulsionando mudança de valores na sociedade, procurando acompanhar, neste sentido, as juventudes como fator central de renovação ética e cultural.

v) Dinamizar e renovar as modalidades dos vínculos com as comunidades diante das mudanças nas realidades locais.

O terceiro eixo é designado Um modo de proceder, e concerne ao escopo organizacional do Fé e Alegria. Está estruturado em três níveis: i) atuação em rede, articulando  hierarquia e colaboração; ii) fortalecimento de vínculos, tendo como variáveis, dentre outras, cuidado com as pessoas e criação de sentido intersubjetivo; iii) perspectiva global, referindo-se a delineamentos como: dinamismo e tensão criativa entre o local e o global, ação local com perspectiva universal e ação global para transformação estrutural.

Last but not least, o quarto eixo, apresentado sob a rubrica Políticas federadas, aponta diretrizes do Fé e Alegria, como federação, para as suas secções nos diversos países. Dentre as diretrizes apontadas, estão:

i) Adotar uma postura relativa à Educação Popular que preze por sua análise e atualização, partindo de “una autocrítica permanente para reconocer excesos, ausencias, limitaciones e incoherencias que distorsionan las maneras de analizar la realidad e impiden la búsqueda de alternativas para transformarla” (Fe y Alegría, 2020b, p. 28)

ii) Assumir um posicionamento em defesa da qualidade educativa, entendida como perspectiva que: a) pelo acesso ao conhecimento sistematizado, contribui para o desenvolvimento de sujeitos livres, com capacidades para incidir na melhoria da sua vida e na transformação do seu entorno; b) desenvolve a integralidade formativa, isto é, a formação integral, “que forma a todas las personas y a toda la persona - razón, corazón

y espíritu -, coordinando e integrando saberes de diferentes escenarios” (ibidem, p.28); c) busca os melhores meios e recursos didáticos  para o êxito das ações educativos; d) reconhece a importância dos processos avaliativos, incentivando avaliações multiformes e diversificadas.

iii) Desenvolver a  formação permanente dos educadores e educadoras, centrada na reflexão de sua prática cotidiana, através de estratégias que fomentem a revisão e (re)avaliação de trajetórias profissionais. Nesse sentido, entende Fé e Alegria, “resulta pertinente introducir en los procesos formativos modalidades investigativas emblemáticas de la Educación Popular como la Investigación Acción Participativa – IAP -, la recuperación crítica de la historia o la sistematización de experiencias en-marcadas en la autorreflexión siempre orientada hacia la acción” (ibidem, p. 29).

iv) Formular propostas de prevenção à violência escolar e de atuação perante casos em que ela ocorra. Trata-se, enfatiza o Movimento, de estabelecer pautas comuns e orientações básicas “para la protección integral de los niñas, niños, adolescentes y jóvenes beneficiarios de los servicios que presta Fe y Alegría a nivel nacional e internacional, ante la presencia de situaciones de violencia, en sus diferentes tipos y modalidades” (ibidem, p. 31).

Neste último caso, Fé e Alegria tem efetivamente empreendido esforços para, com base em evidência científica e tendo presente dimensões da Educação Popular, estruturar modalidades de enfrentamento da violência escolar. Nesse sentido, é de se referir uma proposta chancelada pelo Movimento: O Modelo Dialógico de Prevenção e Resolução de Conflitos. Trata-se de um modelo, realça Fé e Alegría (2022, p. 7),  com “sólida base científica en consonancia con las teorías internacionales que hacen hincapié en dos factores clave para el aprendizaje en la sociedad actual: la interacción y la participación de la comunidad”. Assinala-se que é uma proposta que “puede llevarse a cabo en cualquier otro centro escolar, [e que] la clave para su éxito es mantener su base científica y todos los elementos que definen al modelo” (Fe y Alegría, 2022, p. 24).

Do conjunto das abordagens aqui desenvolvidas, infere-se que o Movimento de Educação Popular Integral e Promoção Social Fé e Alegria tem realizado uma reconfiguração das perspectivas da Educação Popular que amplia a sua base programática diante das mutações societais atuais, além de ter assumido a educação formal (a escola) como uma esfera formativa central. Por outro lado, tal ampliação tem contribuído para o êxito da expansão do Fé e Alegria, levando-o a fincar raízes em diversos países de diferentes continentes. A ênfase na necessidade de tratar com atenção o fator qualidade nos processos educativos e o realce na imprescindibilidade da adoção de base científica nas formulações e ações da Educação Popular constituem aspectos que, de certa forma, marcam um diferencial do Movimento em relação a determinadas visões panfletárias, superficiais e enviezadamente ideologizadas da Educação Popular. Que, de resto, tendem a se repetir no isolamento de nichos, pela incapacidade (e indisposição) de dialogarem com a diversidade de questões que perpassam o cotidiano e o universo axiológico-simbólico dos setores populares. Não raramente, distorcem o significado do popular e caem no populismo.

É paradigmático da ampliação de perspectivas do Movimento Fé e Alegria a sua estruturação em rede e a sua vida orgânica articulada com as chamadas iniciativas. Isto é, ele funciona em rede, com a particularidade de que as redes em seu interior são múltiplas, com caráter diverso e alcance diferenciado: há redes locais, por países ou regiões, redes como federação, redes globais, etc. As redes demandam a manutenção de pontos de vista  comuns, pressupõem uma cultura de colaboração e dependem de visões com capacidade de liderança. São instâncias de ação e de gestão, combinando horizontalidade e verticalidade no trato administrativo. Fortalecem a missão conjunta de cada país/região, fazendo com que a voz de cada lugar seja escutada de forma mais rápida e ágil.

Do ponto de vista temático, as redes desdobram-se nas referidas iniciativas, ou seja, um conjunto de temas que, pelo seu conteúdo, agrega pessoas das secções de Fé e Alegria de diferentes países. Esses temas são bastante ilustrativos da amplitude do enfoque da Educação Popular assumido pelo Movimento. São eles: Formação pedagógica, qualidade educativa, avaliação e aferição de impacto, ecologia integral, formação para o trabalho, juventudes, cidadania, gênero, educação inclusiva, identidade e espiritualidade, migração, infância.

Dessa forma, com o horizonte programático assumido pelo Movimento de Educação Popular Integral e Promoção Social Fé e Alegria, pode-se entender a Educação Popular “como una sola categoria que agrupa dentro de sí a la educación y a todo lo que implica lo popular sin tratar de definir dichos conceptos por separado y por sí mismos” (Calderón, 2016, p. 65). Isso implica dizer, teórica e praticamente, que é atinente à esfera da Educação Popular todos os fenômenos que emergem e perpassam o meio popular, a vida material e simbólica das suas gentes, as dinâmicas socais, econômicas, políticas e culturais que lhes envolvem, etc.

Portanto, como tem mostrado a práxis renovada do Fé e Alegria, a Educação Popular não é apanágio de abordagens e temas que são repetidos à exaustão. É isso que faz com que, por exemplo, Fé e Alegria seja um movimento-rede latino-americano, com dimensão internacional, “que adquiere características propias en los lugares en los que la red se inserta” (Calderón, 2015, p. 101).

 

Conclusão

Na incursão aqui desenvolvida, coloquei em evidência um panorama do Movimento Internacional de Educação Popular Integral e Promoção Social Fé e Alegria. Procurei  enfatizar que o êxito da sua expansão e consolidação decorre, entre outros fatores, de ele, ao mesmo tempo que se mantém situado no marco originário da Educação Popular da sua fundação, ter adotado uma perspectiva que assume a necessidade de renová-la  tanto do ponto de vista teórico como da sua intervenção, isto é, prático, tendo em atenção os diversos fenômenos e desafios que têm perpassado o universo existencial dos setores populares já há algum tempo. Como decorrência disso, Fé e Alegria, por um lado, tem atuado fortemente no âmbito da educação escolar, e, por outro lado, tem diversificado extensamente os temas e questões que são objeto de seu enfoque. Na América Latina, na Europa, na África e, atualmente ramificando-se, na Ásia.

Contudo, há que se ressaltar que, como proposta de Educação Popular, o Movimento concebe a educação formal de modo diferenciado: a instituição escolar deve ser um centro educativo comunitário, quer dizer, mais do que escola. Nesse sentido, a proposta de Fé e Alegria promove a integração da escola com os agentes coletivos e individuais locais, abrindo-a à comunidade. “De este modo, se propone un cambio del concepto de escuela, que hace pensar fundamentalmente en niños y jóvenes que van a oír clases, por el de Centro Educativo Comunitario donde se promueven diversos programas educativos y de desarrollo social para los padres y demás miembros de la comunidad” (Baldonedo V., 1999, p. 132).  

A transformação da escola em um centro comunitário implica um longo processo que tem a ver, por exemplo, com a definição dos conteúdos, com a função que devem desempenhar os pais, com o desenvolvimento de atividades não propriamente escolares, em sentido estrito, mas que são atividades de interesse das comunidades.  Assim, na perspectiva de Fé e Alegria, “la escuela se va transformando en un centro comunitario de producción cultural, de organización de la comunidad y, también, en un espacio para enfrentar y resolver solidariamente los problemas que afectan a las comunidades” (Baldonedo V., 1999, p. 133).

Há, por certo, questões a serem escrutinadas analiticamente na prática da rede educativa do Movimento. Pode-se indagar, entre outras coisas, sobre a existência de eventuais diferenças programáticas, comparativamente, nas ações desenvolvidas nos distintos países, assim como também pode-se perguntar sobre se o grau de efetividade das propostas de Fé e Alegria, em termos concretos, é o mesmo nos variados locais ou se há discrepâncias.

Seja como for, parece não haver dúvida de que o Movimento de Educação Popular Integral e Promoção Social Fé e Alegria emergiu do chão latino-americano onde o asfalto terminava, onde não havia eletricidade, onde a água não chegava e a cidade perdia o nome, e expandiu-se pelo mundo afora imbuído daqueles mesmos propósitos que, nos anos 1950, moveram o jesuíta José Maria Vélaz, na Venezuela, junto com os seus estudantes da Universidad Andrés Bello e com o operário Abraham Reyes.

 

Referências

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MEJÍA, Marco Raúl; AWAD W. (2007). Educación Popular hoy – en tiempos de globalización. Bogotá: Aurora, 2007.

PUIGGROS, Adriana (1996). Refundamentación político pedagógica de la educación popular en la transición al siglo XXI. La Piragua,  nº 12-13, , pp. 10-18.

 


[1] Em tal sentido, tenho me beneficiado significativamente seja de estadias acadêmicas, seja de interlocuções relativas a países como Argentina, Uruguai, Chile, Colômbia, Peru, Bolívia, entre outros. Registro a minha gratidão às instituições que me têm recebido, a exemplo do Departamento de Sociologia da Facultad de Ciencias Sociales de la Universidad de la República/Montevideo. De igual modo, consigno o meu agradecimento às instituições que, de diferentes modos, têm auspiciado as minhas pesquisas, como o CNPq, a Fundación Carolina, a Universidade Federal de Pernambuco e a Universidade Federal da Paraíba.

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