Tese de Doutorado de egressa do CCAE/UFPB aprovada como exemplo de excelência acadêmica
Com destaque no grau de pioneirismo da pesquisa, no mérito científico, na contribuição acadêmica inovadora e na escrita autoral, conforme os requisitos dos estudos em Educação, foi aprovada no último dia 28/03/25, no PPGE/UFPB - João Pessoa, a Tese de Doutoramento de Ione Gomes (egressa do Curso de Pedagogia - CCAE/UFPB), com a Banca Examinadora recomendando, por unanimidade, a publicação do trabalho como livro, em função do seu caráter de potente originalidade e de contribuição para a pesquisa em Educação Popular no Brasil, no campo das drogas, do desvio social, da redução de danos e do trabalho socioeducativo, conforme os novos enfoques contemporâneos da área de EP. A Tese tem como título Educação Popular e Redução de Danos no Campo das Drogas, distinguindo-se por atender com excelência os requisitos de um trabalho doutoral. Foram examinadores os professores Marcos Lemos (Universidade Federal de Pelotas/RS), Jeane Félix (Universidade Federal de Alagoas), Pedro Cruz (UFPB), José Carlos da Silva (UFPB/Associação Brasileira de Saúde Coletiva - ABRASCO), Daniela Barbosa (UFPB) e Ivonaldo Neres Leite (UFPB/International Sociology Association). Abaixo, são reproduzidos recortes da Introdução da Tese. Particular realce foi dado pela Banca ao estilo de escrita do trabalho, marcado pela narrativa autobiográfica, pelo teor pessoal da problematização analítica da pesquisadora e pelo compromisso social.
PARTES DA INTRODUÇÃO DA TESE DE IONE GOMES (PPGE/UFPB)
Alguém já disse que a escrita de um texto é um trabalho artesanal. Curioso pensar a escrita de um texto científico como uma atividade artesanal, com todo o rigor e seriedade que a palavra ciência pode suscitar no imaginário das pessoas. Mas o trabalho do artesão também envolve rigor e disciplina, além de delicadeza, destreza e uma sensibilidade apurada para perceber os elementos que podem ou não constituir a sua obra, dando-lhe beleza estética e uma identidade única. O processo criativo envolve idas e vindas. Assim também é com a escrita de um texto científico.
Neste processo criativo, são convidadas a
Educação Popular, o campo das drogas e a redução de danos para estabelecer um
diálogo. Interrogarmos a realidade e seus sujeitos sociais, com o intento
primeiro de compreender como se dão as relações de poder e o entrelaçamento
entre as estruturas políticas, econômicas e sociais nestes campos do
conhecimento para, a partir daí, compreender como a Educação Popular vem sendo
inserida em trabalhos com redução de danos neste contexto.
[...]
Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, é o
poeta das sensações verdadeiras e da natureza que não carece de interpretações,
assim como o sol, a chuva e as flores. O título e a epígrafe desta seção onde
descrevo parte de minha trajetória, trazem trechos dos seus poemas. Não
desejaria que fosse de outra maneira, pois a pureza dos seus versos dialoga
profundamente com a alma desta pesquisadora.
Iniciei a graduação com muitas expectativas e feliz
por conseguir ingressar em uma universidade pública, afinal, foram muitos os
colegas de escola que ficaram pelo caminho. A escolha pelo Curso de Pedagogia
foi feita de forma racional e bastante segura. A docência sempre me atraiu e me
inspirava muito na minha mãe e nos bons professores e professoras que tive.
Queria ser professora, e para falar a verdade, mesmo sem formação já havia tido
algumas experiências como auxiliar em sala de aula. Porém, para além daquilo
que acontece no “chão da escola”, o curso me apresentou outros horizontes.
Para mim, que não havia cursado disciplinas como
filosofia e sociologia na escola, foi bastante revelador entrar em contato com
certos textos e assistir algumas aulas. Começo a pensar a atividade docente de
uma forma diferente, percebo que cada prática, cada ação desenvolvida em uma
sala de aula deve ser fundamentada e ter objetivos específicos. Tudo é
planejado, porém nem sempre acontece como deveria e temos que ser flexíveis e
criativos. Ao iniciar esse processo, deixo de me enxergar apenas como aluna e
começo a refletir sobre o lugar da professora.
Durante a graduação, busquei me inserir em um grupo
de pesquisa, pois queria participar mais da vida da Universidade. Foi no quarto período do curso que comecei a
participar do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Sociedade e Culturas –
GEPEDUSC/UFPB. Fui bolsista de Iniciação Científica durante quase toda a
graduação, sob a orientação do prof. Dr. Ivonaldo Leite, e tive a oportunidade
de aprender muito com essa experiência, diria até que foi fundamental para que
tomasse a decisão de prosseguir com os estudos. Foi nesse contexto que teve
início a minha trajetória com a Educação Popular e como pesquisadora no campo
da educação sobre drogas.
[...]
Como aluna de iniciação científica, tive a
oportunidade de frequentar várias escolas na região do Vale de Mamanguape;
enquanto aplicava meus questionários, também ia conversando com os professores
e professoras, ouvindo suas angústias e, em alguns casos, os seus medos. Essa
ainda é uma temática que causa medo. Tabus, preconceitos, estigmas,
marginalização e morte são algumas das palavras que me chegam ao pensamento
neste momento, pois era o que ficava implícito e, às vezes, explícito nos
discursos dos professores, que em muitos casos, tinham que lidar com alunos consumidores
de drogas ilícitas e não sabiam muito bem como fazer isso, sem ter que recorrer
ao discurso fatalista e moralista disseminado pela política de guerra às
drogas.
Como estava cursando a graduação em pedagogia, me
pus a pensar na relação entre drogas e educação. Como eu, enquanto professora,
poderia fazer alguma coisa? Qual era a função da educação diante da questão das
drogas? A perspectiva hegemônica repressiva aponta em uma direção que nos leva
às atividades de prevenção baseadas no medo, no terror, no reducionismo de
compreender as drogas apenas como substâncias maléficas que devem ser evitadas a qualquer custo, pois o menor
contato pode destruir a vida do indivíduo. A abstinência e a erradicação das
drogas têm sido os maiores objetivos da política proibicionista,
consequentemente atividades de prevenção que se orientam por seus princípios,
geralmente, têm os mesmos objetivos, e não era esse o tipo de trabalho
educativo que eu gostaria de realizar.
Já sabia o tipo de prática que não iria reproduzir,
mas precisava encontrar outro caminho. Conheci a EP, e uma nova maneira de
compreender a educação surgiu diante de mim [...]. Daí em diante, só conseguia
pensar em uma prática educativa que fosse transformadora em algum nível, que
fosse sinônimo de formação integral do ser humano e que fosse ofertada a todos
de forma igualitária. Conheci a utopia, mas não se tratava daquela utopia que
nos mantém inertes, apenas imaginando como as coisas deveriam ser, é o tipo de
utopia que nos impulsiona, que faz a gente se movimentar e ir construindo os
nossos sonhos pelo caminho.
O grupo de pesquisa e estudos do qual fazia parte
também foi fundamental para me fazer entender o que é a EP. Me tornei uma
educadora popular, por meio da EP pude reconhecer e me orgulhar de minha
identidade latino-americana. Lembro que na escola ouvia muito sobre o
continente europeu e os Estados Unidos, mas muito pouco sobre a América Latina
e sua história, de modo que só comecei a entender o contexto em que estava
situada quando passei a ler os autores latino-americanos que escreviam sobre
EP.
[...]
Escrevi meu Trabalho de Conclusão de Curso e decidi
estudar sobre o papel que ocupava a educação nas Políticas Públicas Sobre
Drogas [...]
Ao término da graduação, fui trabalhar na Educação
Básica em uma escola pública do município de Itapororoca – PB. A escola ficava
situada em um bairro periférico e meus pequenos alunos da educação infantil, em
sua grande maioria, tinham que conviver com a falta de condições básicas de
desenvolvimento. A realidade me machucava demais, era difícil ver crianças que
vinham para a escola sem se alimentarem, carregando um lápis e um caderno na
mão, pois o dinheiro não sobrava para comprar uma mochila. Como professora,
tentava fazer daquela sala de aula um espaço de liberdade e aprendizado, apesar
das dificuldades geradas pelos poucos recursos disponíveis. Lembro de uma coisa
que me marcou bastante, foi o dia em que um pai veio totalmente embriagado
buscar o filho na escola; não imaginava que, em uma sala da Educação Infantil,
fosse me deparar com alguma coisa relacionada às drogas.
O desejo de continuar minha formação acadêmica me
levou a seleção do mestrado e a dar prosseguimento as minhas pesquisas no campo
da educação sobre drogas. Esse momento é como o início de uma nova fase, fui
aprovada e tive o privilégio de entrar na linha de pesquisa em Educação
Popular. Por tudo que vivenciei e estudei durante a Iniciação Científica, já
conhecia razoavelmente bem o modo hegemônico de abordagem das drogas, então entrei
no mestrado disposta a conhecer como essa temática estava sendo desenvolvida no
campo da EP.
[...]
Quando concluí o mestrado, já estava matriculada em
uma disciplina como aluna especial, não queria parar e continuei inserida nos
grupos de pesquisa e na linha de EP. Algumas questões continuavam a me
provocar, pois a maioria das inovações nas formas de abordagens sobre o tema
das drogas estavam voltadas para a questão do cuidado, e as práticas educativas
que tinham características da EP aconteciam em espaços fora da escola.
Foi com essas inquietações e sentimentos que
cheguei até o doutorado, buscando compreender como a EP vem sendo inserida no
fazer de redutores de danos que também são educadores populares. Dessa maneira,
o estudo se apresenta enquanto uma forma de materializar e conhecer novas
inserções e fazeres que vêm sendo conduzidos, inspirados ou orientados pelo
referencial teórico-metodológico da EP.
[...]