A escrita que (trans)forma: anotações interpretativas

  (Modo de citação: GEPEDUSC. Série Materiais de Formação: A escrita que (trans)forma - La escritura reflexiva: aprender a escribir y aprender acerca de lo que se escribe, de Mariana Miras. Mamaguape-PB: CCAE/UFPB, 2024)


Aprender a conduzir os próprios processos mentais através das palavras é uma parte integral do processo de desenvolvimento analítico e conceitual (Lev Vygotsky)

 A linguagem e o pensamento são dois processos cognitivos diferentes que estão      intrinsecamente ligados (Lev Vygotsky) 


1 – Pesquisas contemporâneas têm se dedicado ao estudo em profundidade do ato de escrever, e têm feito descobertas significativas. Entre outros estudiosos/trabalhos, podem ser citados

- Mariana Miras: “La escritura reflexiva: aprender a escribir y aprender acerca de lo que se escribe”

- Linda Flower e John Rayes:  “The Cognition of Discovery: Defining a Rhetorical Problem; Identifying the Organisation of Writing Processes”

- Carl Bereiter e Marlene Scardamalia: The Psychology of Written Composition

2 – Tais pesquisas têm realçado a dupla função da escrita, isto é:

a) Função comunicativa: interagir com as pessoas através dos textos, comunicando-se a respeito do que se escreve.

b) Função representativa ou ideacional (de ideia, idealizar/projetar mentalmente  algo): ato de representar, criar ou recriar situações e objetos no pensamento por parte de quem está escrevendo.

2.1 – As pesquisas também têm destacado que a linguagem escrita pode ser um instrumento poderoso para a autorregulação cognitiva/intelectual, principalmente porque ela tem um diferencial em relação à linguagem oral. Este diferencial reside em aspectos como:

a) As regras da linguagem escrita são mais estritas e constritivas (fator léxico e sintático).

b) Há uma ausência de contexto compartilhado entre o produtor e o destinatário do texto (o que requer que o produtor explique ao máximo o conteúdo para se fazer entender).

c) Acionamento de um funcionamento psíquico mais complexo (monologia: reflexão/’conversa’ do produtor do texto com ele mesmo a respeito do que está escrevendo) 

3 – Assim como há leitura mecânica, em que a pessoa não se apropria do conteúdo que lê, também há escrita mecânica, em que a pessoa escreve por escrever (é apenas digitadora), não assimilando o conteúdo sobre o qual escreve (forma de escrita não reflexiva)

4 – Considerando a dupla função da escrita, principalmente a função representativa/ideacional, pode-se dizer que a forma de escrever também molda o modo de pensar. Disso decorre que:

- A escrita mecânica alimenta um modo de pensar mecânico, que tem  dificuldade para exercitar a reflexividade sobre situações e a realidade a respeito da qual se escreve, isto é, tem dificuldade para exercitar a problematização analítica. Exemplo concreto: pessoas pertencentes a profissões mais burocráticas e habituadas à forma de escrita dessas profissões, como contadores, costumam ter dificuldade para raciocínios abstratos/escrita reflexiva e para a problematização analítica dos fenômenos. A escrita é mecânica. É como se houvesse um engessamento do pensamento.

- Um outro exemplo em sentido inverso: pessoas vinculadas a áreas ou atividades que requerem o uso da abstração e interpretação tendem a ser mais propensos à escrita reflexiva. Uma referência nesse sentido é a vinculação, entre outras, à atividade literária. É como se o pensamento recebesse estímulo/sentisse-se mais livre para se desenvolver.

5 – Portanto: os mecanismos e estratégias implicados nos dois tipos de escrita (mecânica e reflexiva) não são os mesmos, e eles têm impactos diferentes no psiquismo de quem escreve. Ou seja: se a escrita é mecânica, os impactos são uns; se é reflexiva, os impactos são outros.

- Deve-se a Vygotsky a primeira abordagem sobre as consequências da escrita no funcionamento mental das pessoas.

- Segundo ele, a relação entre linguagem interiorizada (monólogo, fala/reflexão conosco mesmo) e a linguagem escrita explica o poder da escrita como instrumento de autorregulação cognitiva/intelectual e de tomada de consciência. Também disse que a escrita é a passagem da linguagem  condensada, centrada no sentido e na pessoa, a uma linguagem expandida, explícita, centrada na sintaxe e no significado.

6 – Considerando as duas funções da escrita, a dimensão epistêmica é uma dimensão específica da função representativa. É reflexiva. A denominação tem mesmo a ver com o sentido de epistemologia: teoria do conhecimento/seu estudo. Ou seja, a função epistêmica da escrita, reflexiva como é, não apenas comunica o conhecimento, mas o analisa, problematiza, transforma-o, levando quem escreve a novos aprendizados e até mesmo a mudar conhecimentos já adquiridos.

7 – Por conseguinte, a escrita epistêmica é um ‘instrumento’ para tomada de consciência e autorregulação intelectual (do modo de penar, de conceber, de analisar) e, portanto, é um instrumento para construção do próprio pensamento. Tem-se assim que a escrita e os processos que quem escreve utiliza tornam possível a aprendizagem, o desenvolvimento do conhecimento sobre nós mesmos e sobre a realidade.

8 – Como, então, escrever de forma reflexiva, quais os passos, procedimentos, ou melhor, quais os modelos? As pesquisas têm apresentado dois modelos: a) o modelo de Linda Flower e John Rayes; b) o modelo de Carl Bereiter e Marlene Scardamali, conforme a seguir eles são especificados

8.1 – Modelo de Linda Flower e John Rayes

- O ato de escrever não é concebido como algo dado, um padrão estabelecido, seguindo uma técnica (ou técnicas) invariáveis, um caminho único, mas é concebido, sim, como ‘problema a ser resolvido’ (como uma espécie de desafio) tendo em atenção dispositivos psicológicos em termo de resolução de problemas (ou mais propriamente da psicogênese).

- Tem-se presente, assim, a produção textual em etapas: planejamento, textualização e revisão, como etapas básicas, seguidas da consideração de dois aspectos: i) a memória de longo alcance (conhecimento que o produtor do texto tem do tema sobre o qual vai escrever, a representação que possui dos destinatários aos quais o texto será dirigido, etc.); ii) contexto da produção do texto, tendo em atenção: a) o que define a produção do texto (ex.: a intenções de quem está escrevendo); b) o próprio texto (o modo como ele vai sendo produzido).

- A possibilidade de gerar novas ideias, e, por consequência e em última instância, o caráter epistêmico da escrita estariam estreitamente relacionadas com a construção do ‘problema retórico’ do texto (por ex.: como ele será desenvolvido? – ponto de partida da ‘situação retórica: o destinatário e o tema; representação mental do problema/questão que se pretende enfrentar/resolver).

- Conforme o modelo, um bom autor se caracteriza por, entre outras coisas, elaborar uma rede de objetivos para incidir sobre o leitor, e por se colocar a ele mesmo (autor) um conjunto de desafios no sentido de construir uma base coerente de ideias que possam conduzir à formação de novos conceitos, e até mesmo reestruturar ou mudar seu conhecimento anterior sobre o tema a respeito do qual ele está escrevendo.

- A pesar de o modelo de Flower e Rayes (por vezes, chamado de modelo de ‘planejamento da escrita’) focar-se na escrita epistêmica, ele tem recebido críticas por, é afirmado, se manter linear e sequencial no processo de escrita. De resto, questiona-se ainda, a perspectiva de Flower e Rayes tem um certo grau restritivo ao limitar o processo de produção textual a único padrão.

8.2 – O modelo de Carl Bereiter e Marlene Scardamalia

- Possivelmente, é o modelo que mais se detém a sistematizar o processo de  escrita epistêmica/reflexiva, avançando com o modo de desenvolvimento dela

- A princípio, faz uma distinção entre duas perspectivas, quais sejam: i) a escrita que diz o conhecimento; ii) a escrita que transforma o conhecimento.

- A escrita que diz o conhecimento é reprodutiva: limita-se a repetir o conhecimento que já existe; é o caso, por exemplo, dos estados do conhecimento ou estados da arte, das revisões de literatura e de modo geral de trabalhos que se limitam a dizer o que os outros já disseram. Embora possa ter um valor, sendo até mesmo uma escrita necessária em algumas situações,  como ocorre no caso dos estados da arte/do conhecimento, servindo como ponto de partida para o desenvolvimento de um estudo, o enfoque, em si, do dizer o conhecimento não têm potencial transformador, e pode até mesmo engessar trabalhos como teses e dissertações, como tem acontecido bastante ultimamente, com eles derivando para a mera repetição/escrita mecânica.

- É a perspectiva denominada transformação do conhecimento que, conforme Bereiter e Scardamalia, se apresenta como epistêmica/reflexiva por excelência no processo de escrita.

- Orienta-se por alguns procedimentos básicos: estabelecimento de objetivos para o que se vai escrever, problematização do processo de escrita/questionar o escrito, representação mental da tarefa de escrever (refletir-dizer-refletir-dizer...)

- A perspectiva de transformar o conhecimento enfatiza que, à medida que o autor analisa o tema/problema sobre o qual escreverá e estabelece os objetivos concretos para o texto, são gerados dois espaços-problema: o espaço do conteúdo (o que dizer) e o espaço problema-retórico (com que intenção e como dizer). Nestes dois espaços, são produzidas as operações que modificam o conhecimento do autor e do texto, e até mesmo os seus próprios objetivos. São modificações possíveis graças à interação dialética entre os dois espaços ao longo da produção do texto.

- Conforme as pesquisas, a escrita epistêmica é um objetivo a ser alcançado e desenvolvido, não sendo, portanto, algo intrínseco à pessoa. Para tanto, requer-se prática e acompanhamento/supervisão de alguém que oriente o processo de escrita. Portanto, a escrita reflexiva pode e deve ser ensinada.

- Escrever reflexivamente pressupõe um certo domínio das habilidades que se requerem para desenvolver o processo de produção textual. Isto explica, conforme as pesquisas, por que o ato de escrever é, para muitas pessoas, um obstáculo mais do que um meio que ajudar a pensar, aprender conhecimentos novos e transformar conhecimentos antigos.

- A possibilidade de o autor criar um espaço-problema relativo ao conteúdo da escrita e possa operar nele, ao que tudo indica, depende da quantidade e do nível de organização dos conhecimentos que ele dispõe em relação ao tema sobre o qual escreverá. Ademais, outros requisitos para o desenvolvimento da escrita reflexiva são, por exemplo: a capacidade (e a intenção) de refletir e questionar sobre os seus próprios conhecimentos, a habilidade de identificar os aspectos confusos e contraditórios no seu texto, a capacidade de ler de maneira estratégica e de reler-se a si mesmo com a “crueldade de um inimigo desapiedado” (tradução direta das palavras de Mariana Miras). Isto, no caso dos trabalhos que requerem orientação (relatórios, monografias, teses, dissertações, etc.), diz muito do rigor na leitura que o orientador deve ter, devendo-se assinalar que rigor, como assinala Bourdieu, não significa rigidez.

- Não é coerente colocar a possibilidade de escrita reflexiva em um ambiente educativo que pratica um processo de ensino-aprendizagem de caráter mecânico e repetitivo.

- Escrever, e especialmente reflexivamente, significa poder. Tentar fazer com que os alunos entendam isso deve ser um objetivo essencial dos processos de escolarização (na Escola Básica e na Universidade). A escrita reflexiva é uma ferramenta poderosa que pode ser ensinada aos estudantes para os ajudar a aprender e a continuar aprendendo ao longo da vida, assimilando conhecimentos, transformando-os, mudando a sua realidade e da sociedade em geral. Sem essa dimensão epistêmica/reflexiva, até mesmo os supostos saberes e teorias críticas tornam-se meramente mecânicos e reprodutivos, sendo infinitamente repetidos sem nenhum efeito prático e emancipatório.

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