GEPEDUSC realizará painel durante o Encontro da ANPEd: Reconfiguração da Educação Popular e crise ecológica

Prof. Carlos Machado (FURG/RS)

Durante a 42ª Reunião Nacional da ANPEd, a mais importante associação científica da pesquisa em educação do Brasil e uma das principais da América Latina, o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Sociedade e Culturas (GEPEDUSC) realizará o painel intitulado Reconfigurações da Educação Popular diante das problemáticas atuais: crise ecológica, meio ambiente na escola e justiça socioambiental. O Grupo promoverá o painel em parceria com o Observatório dos Conflitos Urbanos e Socioambientais do Extremo Sul do Brasil e Este do Uruguai, contando com as presenças dos professores Carlos Machado (Programa de Pós-graduação em Educação Ambiental/Universidade Federal do Rio Grande/RS) e Zacarias Marinho (Programa de Pós-graduação em Educação/UERN). O evento ocorrerá em João Pessoa, entre 26 e 30 de outubro próximo. O painel será coordenado pelo Prof. Ivonaldo Neres Leite. A seguir, reproduz-se o resumo e o texto da perspectiva geral do painel. 

Prof. Ivonaldo Leite (UFPB/GEPEDUSC)

RESUMO

O trabalho situa-se no campo das discussões sobre a refundamentação da Educação Popular e das suas abordagens sobre as novas temáticas contemporâneas, como a crise ecológica. Define como problemática de análise a relação entre uma concepção de Educação Popular reconfigurada e a crise ecológica, em função das questões e desafios que dela decorrem. Metodologicamente, trata-se de um trabalho construído a partir de investigações teóricas e empíricas. Entre outros achados, os seus resultados colocam em realce os seguintes: 1) um significativo debate na América Latina a respeito da refundamentação da Educação Popular; 2) o desenvolvimento de experiências renovadoras do seu marco, como as iniciativas em contextos de violência na Colômbia, os Bachilleratos Populares na Argentina, as ações em prol de uma Educação Ambiental Popular no México; 3) problemas resultantes da crise ecológica, como os seus impactos sobre os setores populares, que demandam abordagem  da Educação Popular. Conclusivamente, afirma-se, por exemplo, que é necessário resgatar o imaginário humano da dependência psicossocial à qual ele está submetido pelo mercado, com isto significando demonstrar e denunciar a programação das pessoas como consumidoras subordinadas às estratégias de marketing para que elas adquiriram produtos prejudiciais e inúteis, muitas vezes fabricados em condições degradantes do meio ambiente.

Palavras-chave: Educação Popular reconfigurada; crise ecológica; meio ambiente; formação.


Prof. Zacarias Marinho (UERN/POSEDUC)


PERSPECTIVA DO PAINEL

1. Introdução

Neste trabalho, tenho em atenção a relação entre uma concepção reconfigurada da Educação Popular e a crise ecológica. Mais concretamente, a problemática do trabalho consiste em, diante das transformações paradigmáticas e dos fenômenos contemporâneos, evidenciar a necessidade de refundamentar a Educação Popular no sentido de que ela se abalize analiticamente  para tratar de questões que, do ponto de vista social e educativo, têm marcado os dias atuais. Nessa perspectiva, o foco de referência empírica da problemática é a crise ecológica. O trabalho resulta de um conjunto de investigações que tenho desenvolvido, sob os auspícios do CNPq, no âmbito da Universidade Federal da Paraíba/Centro de Ciências Aplicadas e Educação. São investigações tanto teóricas como empíricas, utilizando, neste último caso, como recurso metodológico para levantamento de dados e informações, a observação relacional e a entrevista semiestruturada, e, para tratamento do material empírico, a análise temática.  Como decorrência das referidas investigações, na démarche a seguir,  apresento alguns dos resultados obtidos, realizando, ao mesmo tempo, em modo de discussão, o seu escrutínio.

2. Resultados e discussão: ontem, agora e a Educação Popular diante da crise ecológica

O período entre o fim da década de 1980 e os primeiros anos da de 2000 foi marcado por um significativo impacto resultante do que, de forma mal definida, ficou conhecido como ‘crise dos paradigmas e das utopias’. Foi um tempo marcado, entre outros acontecimentos,  pelo rescaldo da tsunami política que representou  a queda dos regimes ditos ‘socialistas’ do Leste Europeu, pelo fim da então União Soviética, pela assunção da ideia de ‘fim da história’ (no sentido de vitória final do capitalismo), pela ascensão da globalização e pela hegemonia do neoliberalismo. Nesse terreno, prosperou uma determinada perspectiva anti-razão - refratária ao pensamento iluminista - segundo a qual ‘não existe verdade’, apenas narrativas diferentes e discursos sobre discursos. Desse modo, teria deixado de fazer sentido empenhar forças em prol de utopias (classificadas como ‘ilusórias metanarrativas’), decorrendo disso, entendia-se, o colapso de escolas de pensamento que, historicamente, têm o compromisso com a mudança social registrado no seu cerne. 

Essa realidade impactou o campo da Educação Popular, tendo em vista ela ser tributária dos projetos de transformação social do século XX e ter relação com o marco conceitual do iluminismo, mesmo que, por vezes, essa relação seja ambivalente. Ademais, não parece haver dúvidas de que a sociedade do século XXI não é a mesma da época em que emergiu a versão clássica da Educação Popular nos anos 1950/1960. Sob os mais variados aspectos, o mundo de hoje é outro.

Como decorrência do referido contexto de crise e dos novos cenários sociais, teve lugar na América Latina um debate – amplamente desconhecido no Brasil – a respeito do futuro da Educação Popular, debate  este que, conforme  Mejía (1996) o sintetizou,  oscilou entre três posicionamentos: 1) o que afirmava que a Educação Popular teria perdido o seu sentido, podendo então falar-se de seu fim; 2) o que, diante da nova conjuntura, assinalava que nada a tinha atingido, devendo, portanto, a Educação Popular  continuar repetindo os mesmos discursos do passado, sem nenhuma alteração; 3) o que enfatizava que o novo cenário requeria que a Educação Popular fosse refundamentada, sob pena de tornar-se residual e não dialogar com a efetiva realidade contemporânea dos setores populares.

Não vou, aqui, denominar os agentes de cada um desses posicionamentos e enfocar as especificidades das suas abordagens. Não há espaço para isso.  Limitar-me-ei apenas a realçar elementos que traduzem bem a natureza de tal debate. Um desses elementos refere-se a alguns dos títulos dos trabalhos produzidos no ambiente da discussão, quais sejam: 1) Educación Popular hoy: entre su refundamentación o dissolución (Mejía, 1996); 2) Saldando cuentas con la refundamentación (Carillo, 2007); 3) Refundamentación político pedagógica de la Educación Popular en la transición al siglo XXI (Puigrros, 1996); 4) Educación Popular hoy – en tiempos de globalización (Mejía & Awad, 2007); 5) Educação Popular, ontem e hoje: perspectivas e desafios  (Leite, 2016). Outro elemento que pode ser mencionado concerne ao abandono, por parte de próceres teóricos, de abordagens que eles desenvolveram e que serviram de referência à Educação Popular. Este é o caso, por exemplo, do teólogo Clodovis Boff, um dos formuladores da teologia da libertação, perspectiva essa que serviu (e serve)  de inspiração a muitas ações em Educação Popular. Em 2007, Clodovis Boff realizou uma autocrítica e fez duros questionamentos à teologia da libertação (Boff, 2007), sendo, por outro lado, severamente criticado por seu irmão, também teólogo, Leonardo Boff, que se disse perplexo com a nova postura de Clodovis e o acusou de estreiteza (Boff, 2008).

Esse foi o cenário que emergiu, no contexto da Educação Popular latino-americana, como decorrência da referida  ‘crise dos paradigmas e das utopias’. Mas foi também nesse cenário que, aqueles/as que pugnavam (e pugnam) pela refundamentação da Educação Popular’, para assegurar a sua vigência vitalizada, se empenharam na busca de conhecer/entender os novos fenômenos sociais para, tanto do ponto de vista da formulação teórico-analítica como da intervenção na realidade, sistematizar novas modalidades conceituais e de ação concernentes ao fazer educativo popular. Não poucas vezes, contudo, eles têm sido incompreendidos, sendo questionados – e mesmo atacados – por segmentos que se mantêm, sectariamente, atados a visões da Educação Popular dos anos 1960.

Seja como for, nos últimos tempos, diversas experiências renovadoras  da Educação Popular têm sido desenvolvidas em diferentes países da América Latina. As iniciativas de intervenção em contextos de violência na Colômbia (Munõz e Meza, 2004), os Bachilleratos Populares na Argentina (Alfieri e Lázaro, 2019), as ações em prol de uma Educação Ambiental Popular no México (Reyes et al., 2016), etc., são exemplos tidos como referência a esse respeito.

O meu pressuposto relativo à Educação Popular é, portanto, de uma Educação Popular reconfigurada, entendendo, conforme as investigações que tenho desenvolvido, que é ela que permite tratar, com fiabilidade, de problemáticas atuais, como a crise ecológica. A propósito desta, muitos dos cenários descritos pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU terão lugar não em 2100 ou 2050, como, a princípio se imaginava, mas antes disso. Nesse sentido, no Brasil, são exemplificativos fenômenos como a tragédia que atingiu o Rio Grande do Sul em 2024 e, na Paraíba, a complexa situação urbana da cidade da Baía da Traição, decorrente do avanço do mar, como efeito do derretimento das calotas polares provocado pelo aquecimento global. Além disso, o aumento das temperaturas cria condições à expansão de doenças transmitidas por mosquitos, como dengue, zika e chikungunya.

Os   dados e informações    sobre   a   efetividade do aquecimento global são muito   consistentes. Tanto do  ponto de vista  quantitativo,  no  que  diz respeito  à série estatística longitudinal, quanto do ponto de vista qualitativo, no que se refere ao aporte da retrospectiva  histórica   acerca   do   modelo   de  desenvolvimento  adotado pelo modo capitalista de produzir. 

Concretamente: está    demonstrado que   a camada de  gelo  do  polo  norte  sofreu uma  significativa  redução  nas  últimas  décadas  e  que  a  cobertura  gelada  da terra diminuiu. Conforme dados que sistematizei em outro local (Leite, 2016), há evidência  de  que  a  espessura  de gelo do polo norte sofreu uma redução de  cerca  de  40%  e  que  a  cobertura gelada da terra, desde a década de 1960, foi  reduzida  em  torno  de  10%. No tocante  às  emissões  de  gases,  os  níveis    de    dióxido    de    carbono  aumentaram   intensamente   com   a industrialização do mundo, agravando o efeito  estufa.  Daí tem-se o registro de que a elevação da temperatura da terra sofreu um aumento de cerca de 0,6C no século passado.

Diante de tal contexto, emergem, entre outros, dois fatos causais, isto é, fatos que causam outros fatos: 1) o conflito em torno das pautas socioambientais, como resultado de diferentes interesses em jogo; 2) o modo como as consequências da crise ecológica atinge de forma distinta os diversos segmentos da população, com os principais danos recaindo sobre os setores populares, o que, então, inscreve na agenda de debates a necessidade de se considerar a questão da justiça socioambiental. O debate público e a ação formativa (nas escolas e fora delas)  em torno desses fatos, assim como de outros oriundos da crise ecológica, requerem uma perspectiva instituinte, ou seja, uma perspectiva educativa que não se limite a reproduzir os marcos das estruturas instituídas em matéria de meio ambiente, conforme é comum nas abordagens naturalistas da educação ambiental.

É pouco provável que, para assumir essa incumbência, outra concepção  educativa esteja melhor posicionada do que a concepção representada  pela Educação Popular, pelo seu caráter sócio-histórico alternativo, devendo, contudo, para tanto, dotar-se de credenciais epistemológicas, refundamentando-se, no sentido de fazer frente ao desafio cognitivo e social que lhe está posto. Poderemos, assim, avançar para o que, incipientemente, se chama de Educação Ambiental Popular (Leite, 2020).

3. Conclusão

Neste trabalho, foquei uma concepção reconfigurada da Educação Popular e a sua relação com a crise ecológica. De forma específica, tive como problemática de abordagem a necessidade de sua refundamentação, diante das transformações paradigmáticas e dos fenômenos contemporâneos, objetivando credenciá-la analiticamente para tratar de questões como as decorrentes da crise ecológica. Em modo de conclusão, e como desdobramento da discussão realizada no texto, apresento três reflexões sintetizadas a serem consideradas pela Educação Popular reconfigurada na abordagem das urgências resultantes da crise ecológica, conforme já as enfatizei em outro fórum científico (Leite, 2023). 

A primeira diz respeito à necessidade de realçar uma ‘regra verde’ como indicador central de pilotagem da economia, substituindo a dita ‘regra de ouro’ das políticas de austeridade e de ajuste estrutural do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional.

A segunda refere-se ao planejamento ecológico, tendo em atenção o longo prazo e enfatizando que o problema não é propriamente a indústria e o uso de técnicas na relação com a natureza, mas, sim, a ausência de critérios no modo de tratar o meio ambiente e a falta de controle cidadão diante da ação predatória da acumulação econômica.

Last but not least, a terceira reflexão concerne à esfera axiológica-simbólica, muito própria da educação, e incide sobre a formulação de abordagens e a disputa de ideias. Trata-se, por exemplo, de resgatar o imaginário humano da dependência psicossocial à qual ele está submetido pelos ditames da lógica do mercado. Isto significa, entre outras coisas, demonstrar e denunciar a programação das pessoas como consumidoras dóceis, subordinadas às estratégias dos especialistas de marketing comercial para que elas adquiriram produtos prejudiciais e inúteis, muitas vezes fabricados em condições de trabalho indignas e degradantes do meio ambiente.

Referências

ALFIERI, Ezequiel; LÁZARO, Fernando. Lo político pedagógico: los Bachilleratos Populares en Argentina. Revista Cocar, v. 13, nº 27, 2019. Disponível em: < https://periodicos.uepa.br/index.php/cocar/article/view/2819/1239> Acesso em: 02 Mar. 2025.

LEITE, Ivonaldo. Medio ambiente y crisis ecológica:  aportes hacia una educación ambiental emancipadora. III Congreso Agua, Amiente y Energía. Montevideo/Universidad de la República, 2023. Disponível em: <https://www.fing.edu.uy/imfia/congresos/caae//assets/trabajos/new/Trabajos-Poster/31_Crisis_ecol%C3%B3gica,_el_futuro_y_los_aportes_hacia_una_educaci%C3%B3n_ambiental_emancipadora.pdf> Acesso em: 03 Mar. 2025.

LEITE, Ivonaldo. Sobre a Educação Ambiental Popular: bases e perspectivas. XXV Encontro de Pesquisa Educacional do Nordeste/Reunião Científica da ANPEd – GT 06 – Educação Popular. Salvador: Faculdade de Educação/UFBA, 2020.

MUNÕZ, Jairo; MEZA, Fabio Alonso. Educación Popular y educación para la paz en Colombia: herramientas para transformar el conflicto. Papeles, nº 88, 2004. Disponível em: < https://www.fuhem.es/papeles_articulo/educacion-popular-y-educacion-para-la-paz-en-colombia-herramientas-para-transformar-el-conflicto/> Acesso em: 03 Mar. 2025.

REYES, Etzeli I. Morales; CEDILLO, Jesús Gastón G.; PLATA, Miguel Ángel B. Educación Ambiental Popular para el manejo sustentable de recursos naturales en una localidad rural del subtrópico mexicano. Sociedade & Natureza, 28(1), 2016. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/sn/a/n8H6BvNtMmzmydKjGwBYf7F/?lang=es> Acesso em: 03 Mar. 2025.


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