Entre grãos de verdade e a crítica da crítica: educação, sociedade e pesquisa em revista

REPRODUÇÃO DE ENTREVISTA ORIGINALMENTE PUBLICADA POR LATINOAMÉRICA REFLEXIONA 

 Latinoamérica Reflexiona (LR)  entrevista Ivonaldo Leite, sociólogo, PhD, professor da Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, e pesquisador em universidades latino-americanas e europeias, com estudos em distintos campos histórico-sociológicos, nomeadamente na esfera da Sociologia da Educação e da Violência

'Operários', de Tarsila do Amaral 

LR: Em entrevista à revista portuguesa A Página da Educação, nos anos 2000, fez uma crítica à ‘superficialidade de abordagens’ que, situada o campo dos movimentos sociais, enfatizava a necessidade de ‘ir além do discurso panfletário e das palavras de ordem’. Mantém?

Ivonaldo Leite: Bem, já faz um bom tempo, e não lembro de quando é a entrevista...

LR: De 2006, nº 156 da revista (aqui: https://www.apagina.pt/)

Ivonaldo Leite: Pois, há dezesseis anos, tem a marca do tempo, e se calhar, o texto, em sua integralidade, tem até  mesmo o último selo da juventude de alguém que estava a deixar essa fase da vida.  Mas, sim, mantenho.  E vou mais além. Diria que, sob muitos aspectos, a superficialidade de abordagens se ampliou, e estendeu-se intensamente em direção a outras esferas sociais, como o contexto acadêmico em ciências humanas.

LR: O que quer dizer com isso?

Ivonaldo Leite: Refiro-me, entre outras questões, a dois problemas. Um é a qualidade de leitura, ou a sua falta, hoje em ciências humanas. Por exemplo, podes apanhar determinados artigos, dissertações e teses, e verás citações e mais citações de autores e autoras que, a rigor, não foram minimamente lidos. O outro problema é de natureza teórica e metodológica. Um grande desconhecimento em relação às produções clássicas e contemporâneas dos campos científicos e em relação aos dispositivos de operacionalização metodológica da pesquisa.

LR: E a crise da educação?

Ivonaldo Leite: Em que sentido?

LR: Geral...

Ivonaldo Leite: De algum modo, é uma discussão que está tomada por lugares-comuns. Avaliações do PISA, falta de recursos, políticas educacionais mal formuladas, etc., etc. Como é próprio dos lugares-comuns são perspectivas que contêm grãos de verdade perdidos no amálgama da inestruturação teórica. A problemática parece ser mais profunda. Considere-se, por exemplo, que, entre 2002 e 2015, no Brasil, não faltou dinheiro para a educação. Investimento na escola básica, expansão do ensino superior e da rede tecnológica, incentivo à qualificação docente, projetos, bolsas, enfim, uma diversidade de iniciativas que, em tese, colocaria a formação dos brasileiros e brasileiras em outro patamar. Mas algo não correu bem. Após mais de uma década de investimento maciço em educação, não são substancialmente visíveis, qualitativamente falando, os resultados. E mais: do ponto de vista da formação, da percepção civilizatória e das questões estruturais da nação, o Brasil gestado sobretudo entre 2013 e 2016 e que impactantemente veio a lume em 2018, é um país mais atrasado do que o de antes de 2002. Constantes manifestações de intolerância, de preconceito, misoginia, tendo-se desenvolvido uma corrente claramente negacionista da ciência, a ponto de se combater as vacinas! Penso que, para entender esse quadro, algumas hipóteses devem ser colocadas sobre a mesa. Entre elas, a queda da qualidade da formação, a existência de formadores nas universidades que não estão à altura do que os atributos do mister exigem, a fragilização da educação formal em decorrência da ação de outras instâncias (como igrejas que funcionam como partido político), e algo cada vez mais presente: a crise da educação é também uma crise dos discursos críticos sobre educação.  

LR: Como assim?

Ivonaldo Leite: Em significativa medida, com as devidas exceções, os tradicionais discursos críticos sobre educação têm perdido as suas valências críticas, seja por se mostrarem defasados diante das complexas problemáticas contemporâneas, seja porque transitaram da esfera do instituinte para o instituído - a trama dialética mencionada pelo movimento institucionalista -,  seja porque muitos dos seus porta-vozes se limitam a repetir jargões, a defenderem autores e teorias tal qual torcidas organizadas defendem os seus clubes. Claro, aí, em maior ou menor medida, não deixa de estarem presentes as peculiaridades lucrativas próprias das variáveis do campo científico. O que, aliás, só faz confirmar a falência dos discursos desses supostos críticos.  

LR: Em uma entrevista  a um fórum sociológico [reprodução aqui: https://www.youtube.com/watch?v=DCKkv4MMK9U] mostrou-se cético em relação ao ensino remoto durante a pandemia. Mantém a crítica?

Ivonaldo Leite: Totalmente. Uma compreensão razoável do que é educação não pode se colocar de acordo com uma modalidade de ensino em que se fica falando diante de uma tela, muitas vezes, para "janelas fechadas" [câmaras não abertas], tendo-se que do outro lado pode-se estar fazendo qualquer coisa, menos numa relação educativa. Em muitos casos, o ensino remoto é uma grande enrolação, e determinados setores "da geração pandemia" vão pagar um alto preço por isso, principalmente segmentos oriundos das classes populares.  Para eventos, bancas na pós-graduação, determinadas atividades universitárias, etc., a modalidade remota tem demonstrado utilidade, mas, no que se refere ao ensino, e sobretudo na escola básica, a história é outra. 

LR: Tem sido desenvolvido um intenso debate entre analistas sociais brasileiros considerando o que tem sido chamado de ‘racialização do país’. César Benjamin, entre outros,  tem combatido essa ideia ‘com capa e espada’. O episódio mais recente dessa polêmica envolveu o antropólogo Antonio Risério, com ele sendo objeto de ataques. Como avalia?

Ivonaldo Leite: Em primeiro lugar, como em qualquer debate acadêmico, e não só,  dois requisitos são indispensáveis nessa discussão: por um lado, civilidade, elegância na argumentação,  o que significa respeito ao interlocutor, e, por outro lado,  racionalidade. O que leva à abertura, à possibilidade de convencimento. Sem isso, o que se tem é um simulacro de debate, onde se discute não com pessoas, mas com personagens movidas por posições pré-formatadas. Isto posto, tendo a perfilar ao lado da posição onde está o César Benjamin, que, aliás, é alguém com uma história de vida a ter em conta: combatente da ditadura militar aos 14 anos,  preso aos 17 e torturado, tendo ficado detido durante  5 anos, sendo, de resto,  um quadro com capacidade de formulação notável. Penso que questionar a racialização do Brasil é um imperativo de racionalidade. Por diversas razões, como: as identidades não são fixas, eternas, mas sim construídas socialmente;  a identidade é a parte socializada da individualidade, logo não é crível que alguém que não foi socializado em determinada esfera material-cultural tenha a identidade desta; a identidade cultural e biológica brasileira não é negra, branca ou indígena, é, sim, mestiça, resultado da mistura de povos, própria de um país formado a partir da miscigenação. Um demonstrativo disso é a língua falada no país, principal canal através do qual se expressa a identidade de uma nação; ou seja, o português brasileiro é um português que contém palavras africanas e indígenas, diferente do português de Portugal. Ademais, quem leu devidamente os clássicos, não se limitando a versões de ONGs ou pedaços de apostila, sabe perfeitamente que o próprio Portugal, entre as nações europeias, sempre foi um país tendente à mistura com outros povos, decorrência da ocupação árabe da Península Ibérica, e resultante também da mistura cultural presente na formação da nação lusa: presenças celta, romana, germânica, e moura – esta última de povos oriundos do Norte da África.  Tudo isso não significa, claro está, negar a existência de manifestações racistas no Brasil, principalmente nos dias atuais, manifestações abomináveis e que devem ser combatidas.  Mas a solução não está em racializar o país. O Brasil é um país de muitas cores, com gradações de cor de pele que não encaixam em classificações burocráticas. Há que considerar e superar a escandalosa desigualdade social - com as suas diversas formas de pobreza – que assola a nação, atingindo pessoas de todas as cores. A desigualdade estrutural, esta sim, tem preponderância sobre outras dimensões.  Ademais, e é até uma situação que me é familiarmente própria - mas não é isso que importa aqui -, considere-se o seguinte: pessoas, famílias, que pelo lado materno ou paterno, mesmo que longinquamente,  tenham descendência portuguesa. Pela lógica da racialização, seria natural então que eles/elas buscassem assumir a identidade portuguesa em decorrência da gota de sangue antepassada lusa. Ora, mas se trata já da quarta, quinta, sexta geração, resultando significativamente em novas gerações de mulheres e homens miscigenados. Não são portugueses, pois foram socializados na cultura brasileira, são brasileiros, filhos de um país resultante da mistura de povos, miscigenado e mestiço,  com cores distintas, como bem captou Tarsila do Amaral no quadro Operários, no início do século passado. É uma pena que essa discussão seja desenvolvida ignorando clássicos fundamentais sobre ao assunto, como, entre outros,  O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro, e queira transportar para o Brasil o modelo de racialização dos Estados Unidos, uma realidade completamente diferente da nossa. Mas é isso que determinadas  ONGs têm feito, com o apoio financeiro, por exemplo, sabe de quem de quem? De estadunidense Fundação Ford... Eles têm suas razões para querer  racializar e dividir o Brasil. A inteligência brasileira, por sua vez,  deveria manter-se atenta a isso. É esse o bom combate que o César Benjamin e outros têm travado. De resto, cabe lembrar o que disse Wyatt Tee Walker, líder com Martin Luther King da luta antirracista nos EUA, e que seguiu no front após o seu assassinato. Num texto intitulado A Light Shines  in Harlem, disse ele, com maior ou menor variação, que contemporaneamente alguns enfoques, oriundos da teoria da raça, da abordagem pós-marxista e pós-moderna, conduzem-nos a uma direção equivocada na discussão sobre racismo, separando até crianças da escola elementar em categorias raciais explícitas, enfatizando diferenças ao invés de semelhanças. Para ele, é preciso ir mais fundo que a questão da raça, ensinando-nos a compreender cada pessoa não como símbolo de um grupo, mas como um indivíduo singular, especial, no contexto de uma humanidade compartilhada. Essa é a senda do bom combate da luta antirracista. Pois bem, cabe a cada pessoa fazer a sua avaliação de tais palavras, e, acima de tudo, ser honesto analiticamente,  ao invés de meramente repetir o oba-obra irrefletido.

LR: A propósito da relação entre formação e formadores, como avalia o debate diretividade & não diretividade?

Ivonaldo Leite: Penso que os formadores devem cumprir o seu papel, o que evidentemente implica diretividade. Como bem diz a pedagoga sueca Inger Enkevist, a recusa à diretividade é um grande equívoco, até parece, como ela afirma, que se vai a uma instituição educativa para qualquer coisa, menos para estudar, no sentido próprio do termo. Num país, como o Brasil, onde a formação de base é precária, isso é um desastre. As consequências mais visíveis de uma tal posição são, por exemplo,  a chegada de estudantes às universidades com imensas dificuldades em atender aquilo que se espera de um universitário, bem como o grande quantitativo do que se denomina analfabetos funcionais, como as estatísticas apontam. Já para não se falar daqueles que, no exercício de uma profissão, deixam muito a desejar, em decorrência dos problemas na formação. É evidente que não se vai teleguiar, em sentido unilateral, a criança, o adolescente, jovem e mesmo o adulto, de modo que se inviabilize uma perspectiva formativa autogerida para si. Aliás, contraditoriamente, isso se encontra, sim, em alguns enfoques não diretivos, quando  cerram fileiras apenas em torno de algumas abordagens e autores, desconsiderando a diversidade teórica e a pluralidade que o processo formativo requer – embora, mais uma vez contraditoriamente, costumem falar em ‘’liberdade e ‘respeito à diferença’. Palavras ocas,  faz de conta. O professor, seja lecionando, seja orientando na pós-graduação, ao desenvolver as suas ações de forma criteriosa, sabe do potencial dos estudantes. Cabe-lhe apresentar perspectivas, fazer indicações, corrigir os textos,  dizer “olha para o progresso da sua formação isso é útil, pode ir por aí.” E cobrar, cobrar pelo menos até certo ponto. Se o estudante vai seguir ou não, a responsabilidade é dele. Quando se percebe que o estudante não está empenhado, não quer ou não vai seguir as orientações, o papel do professor finalizou, e então ele se afasta. Afastamento pedagógico, conforme uma perspectiva autogerida.    

LR:  Sabemos dos seus estudos no campo da Sociologia Criminal, incluindo uma pesquisa que realizou no Uruguai em torno da política pública do país relativa à descriminalização da cannabis. O que dizer, do ponto de vista sociológico, sobre tanta violência?

Ivonaldo Leite: A Sociologia tem uma longa tradição de estudo sobre a violência, uma tradição que remota aos seus teóricos fundadores. Por certo, é um dos fenômenos sociais  mais complexos para as abordagens com chancela científica, e, portanto, não podem ser devidamente tratados em respostas de uma entrevista. É um fato que, ao longo da história, diversos pensadores, como Hobbes e Rousseau, discutiram o tema da ‘bondade e da maldade’ do ser humano. A questão de ‘se o ser humano é pacífico ou violento por natureza’. Contudo, parece ser necessário superar concepções dicotômicas, como esta, em favor de uma percepção histórico-sociológica e antropológica que permita a compreensão das ações humanas tendo presente que o ser humano é complexo, sendo capaz tanto da paz como da violência, e que estes estados não são dados inatos estáticos, mas sim processuais e decorrentes do tipo de construção social, em termos societais, no qual ele está envolvido. As escolas criminológicas têm se ocupado de diferentes formas sobre o tema. Por outro lado, seria equivocado não considerar que os problemas que perpassam o sistema de justiça, como a lentidão e a falha em sancionar os crimes cometidos, principalmente os crimes de sangue, pesam na reprodução do ambiente de violência.   

LR: Para finalizar, ainda uma menção à entrevista concedida por si à revista portuguesa A Página da Educação, referida no início. Nela menciona os conceitos de racionalidade formal e racionalidade substantiva (https://www.apagina.pt/).  O que dizer dessas duas racionalidades no mundo de hoje?

Ivonaldo Leite: A princípio, é preciso ter em conta o que elas representam. São dois conceitos da sociologia clássica, nomeadamente da sociologia weberiana. A racionalidade formal diz respeito às formas metódicas e calculistas do sistema jurídico e econômico das sociedades que emergiram com a modernidade. Já a racionalidade substantiva é mais do que isso, tem em conta os fins, considerando os valores que orientam determinadas perspectivas e contextos. Sim, penso que a validade desse enfoque é central na contemporaneidade, principalmente tendo em contas as implicações do mundo tecnológico em que vivemos e do modo de vida vigiado que nos ronda. É preciso buscar o sentido das coisas, e não deixar a subjetividade ser anulada por aquilo que o próprio Weber chamou de jaula de aço, isto é, a lógica sistêmica que rege a sociedade. Como diria Camus, é preciso imaginar Sísifo feliz.

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