Carta a um(a) jovem pesquisador(a) em Educação
Por António Nóvoa (Universidade de Lisboa)
Nunca hesitei tanto na preparação de uma conferência como desta vez. Andei para trás e para a frente. Escrevi e deitei fora. Papéis atrás de papéis.
Desisti e comecei a preparar uma intervenção mais normal.
Mas a carta não me saía da cabeça, e venceu-me.
Aqui a têm, apesar de o género epistolar pertencer a um tempo que já não é o nosso, “porque uma carta fixa a
memória do que se diz. E hoje não se
diz nada e apenas se fala, que é coisa de se cumprir e esquecer”.
Numa carta, o que interessa é a relação, esse diálogo em
que conversamos connosco quando nos dirigimos ao outro, ainda que seja um outro
imaginário. Esta é “a forma mais concreta de diálogo que não anula inteiramente
o monólogo”.
Uma carta permite maiores liberdades do que outros estilos
e, por isso, me atrevo
a dar-vos oito conselhos, e ainda um nono, porque nele vai tudo
o que me inquieta, tudo
o que procuro na vida.
Antes de começar, permitam-me que vos recorde o desafio de David Labaree aos jovens investigadores no seu Sermão sobre investigação educacional: “pensem no vosso trabalho como um esforço para equilibrar os valores da verdade, da justiça e da beleza [no sentido do bom que há na Natureza e no mundo]”. É este o meu mote.
1. Conhece-te a ti mesmo
E assim componho o meu primeiro conselho – “Conhece-te a
ti mesmo” – que, sem surpresa, vou
buscar a Rainer Maria Rilke, na sua primeira carta a um jovem
poeta: “Está a olhar para fora de si, e é sobretudo isso que não deve fazer agora.
Ninguém o pode aconselhar, ninguém
o pode ajudar, ninguém. Há uma
única via. Entre
dentro de si”.
Deixem-me fazer uma confissão: vim parar às coisas da
Educação por acaso. Mas, nesse dia, voltei-me para mim, procurei
perguntas e respostas, e aprendi a habitar este
lugar. Ouvi as palavras de Ricardo Reis [heterônimo do poeta Fernando Pessoa]:
“Põe quanto és no mínimo que fazes”.
Talvez não seja muito importante o que a vida faz connosco; impor- tante, sim, é o que cada um de nós faz com a vida. E não hesito
em dizer-vos que a certeza é a distância mais curta para a ignorância. É preciso ter dúvidas.
“Não queiras saber
tudo. Deixa um espaço livre
para te saberes
a ti”.
Cada um tem de fazer um trabalho sobre si mesmo até encontrar aquilo que o define e o distingue. E ninguém se conhece sem partir. Sim, parte, divide-te em partes. Sem viagem não há conhecimento. E sempre que se bifurquem os caminhos à tua frente, segue por aquele que tiver sido menos percorrido. É isso que marcará a tua diferença como investigador. Sem coragem não há conhecimento.
2. Conhece bem as regras da tua ciência,
mas não deixes
de arriscar e de
transgredir
Conhece bem aquilo que fazes,
a tua
ciência, o teu campo académico, as regras, as metodologias, as normas da arte-ciência da educação. Conhece-as, mas cumpre-as quanto
baste [não idolatres autores ou faças louvor de teorias]. A investigação ou é criação ou não é nada.
Também tens de compreender bem o ambiente tóxico que, desgraça- damente, em alguns lugares, hoje se respira na universidade, com
artigos e mais artigos artificiais, plágios e autoplágios, falta de orientação
sistemática, extrativismo académico, etc.
Não te vou aconselhar a recusares frontalmente este mundo.
Não tenho o direito de te empurrar para um suicídio
rápido. Mas não faças da tua
sobrevivência um suicídio
lento, vergado a um trabalho
alienado, a um “produtivismo académico” que está a destruir
o melhor da cultura universitária.
Sim, é preciso assumir riscos. Se passarmos a vida a evitá-los, renunciaremos à possibilidade de produzir algo interessante, com significado para nós e para os outros. O que importa, na ciência, é a capacidade de ver de outro modo, de pensar de outro modo. Se repetirmos o mesmo, encontraremos o mesmo. Sem transgressão não há descoberta, não há criação, não há ciência.
3. Conhece para
além dos limites
da tua ciência
E assim chego ao meu terceiro conselho – “Conhece para
além dos limites da tua ciência” – que vou buscar a um princípio que Abel Salazar
fez seu: “o médico que só sabe
de medicina, nem
de medicina sabe”.
E aqui entra a
preguiça – ou melhor, o ócio – de que nos fala
David Labaree. E como é difí-
cil cultivar o otium nesta universidade do nec-otium, do não-ócio, do nego- tium.
É preciso ler, ler muito,
ler devagar, coisas
diversas. É preciso pensar,
pensar muito, conquistar o tempo de pensar. Se não gostas de
ler nem de pensar, podes tornar-te um bom técnico
de questionários ou de entrevistas ou de estatísticas ou de outra
coisa qualquer, mas não serás um bom investigador.
Nunca te esqueças que inteligência vem de inter-legere, da capacida- de de
interligar. E que complexidade vem de complexus,
daquilo que é tecido em conjunto. Uma
e outra necessitam de uma base de cultura que não se esgota na “caixa” de uma ciência
só. O matemático conhecerá melhor
o
mundo, e a sua própria disciplina, se souber de filosofia;
e o historiador se souber de física; e o economista se souber de filosofia; e educador se souber
de literatura
e… por aí adiante … num entrelaçar de culturas que é a própria definição de
cultura.
As ideias novas estão na fronteira, porque esse é o lugar do diálogo e dos encontros. Talvez seja o momento de te lembrar que grandes descobertas foram feitas por acaso, mas que o acaso nunca é acaso, favorece sempre os olhos preparados para ver. Não há nada mais útil do que o conhecimento inútil. É ele que nos prepara para ver e para pensar fora dos quadros rígidos em que tantas vezes nos deixamos prender.
4. Conhece em ligação com os outros
Hoje, mais do que nunca, o
trabalho científico necessita de uma dimensão colectiva, colaborativa. Aqui
fica o quarto conselho: “Conhece em ligação com os outros. Conversa, partilha
cada passo do teu trabalho”. Como se
diz num belo Manifesto sobre a ciência lenta:“Precisamos de tempo para pensar, de tempo para amadurecer. Precisamos até de tempo para nos desentendermos uns com os outros, sobretudo quando se trata de recuperar um diálogo perdido
entre as humanidades e as ciências”.
A investigação faz-se com saltos e sobressaltos, mas exige uma con-
tinuidade de condições, de infra-estruturas e de grupos. É esse património que nos permite chegar onde
nunca chegaríamos sozinhos. Não podemos descansar na luta por políticas
científicas que valorizem o conhecimento (todo
o conhecimento), que valorizem a ciência (como
ciência e como
cultu- ra).
Não há universidade, nem ciência, sem debate, sem partilha, sem transmissão de uma herança. Por isso, é tão importante o trabalho colectivo e a dimensão intergeracional, bem presentes na ideia original de seminário, que junta a ciência e o ensino, a pesquisa e a formação avançada. É na conversa com os outros, mestres e colegas, que se definem e enriquecem os nossos próprios caminhos.
5. Conhece com a tua escrita, pois
é isso que te distingue como investigador
O meu quinto
conselho pode parecer-vos excessivo, mas é o que penso depois de muitos anos a orientar teses e grupos de pesquisa: “Conhece com a tua escrita,
pois é isso
que te distingue como investigador. Se não gos- tas de escrever, então desiste, dedica-te a outra vida, não foste feito para investigar”.
A escrita académica não é apenas um modo de apresentar dados ou resultados, é sobretudo uma forma de expressão pessoal e até de criação artística. Verdadeiramente, é no momento da escrita que se define o trabalho académico, que cada um encontra a sua própria identidade como investigador. A escrita ajuda-nos a conhecer os nossos limites.
6. Conhece para
além das evidências
Chego finalmente ao sexto conselho, directamente
relacionado com o campo da Educação. Diz assim: “Conhece para além das
evidências, habi- tua-te a trabalhar numa ciência-do-que-toda-a-gente-sabe e
aceita que serás muitas vezes objecto de troça na praça pública”.
Mesmo antigas, as palavras de Daniel Hameline continuam
actuais: “a educação é a coisa menos conhecida, a que se conhece pior,
justamente porque é a coisa mais conhecida, a que se conhece melhor, a coisa
que todos conhecem”.
Como instaurar conhecimento científico numa área tão
saturada de ideias e de certezas, quase sempre definitivas? Eis o que me levou
a escrever, há quase dez anos, um livro
chamado Evidentemente. Porquê evidentemente? Porque em educação, tudo o que é evidente,
às vezes, mente.
O problema não está na diversidade, nem sequer na abundância
de opiniões. O problema está na forma como se misturam e se enleiam como se
valessem todas o mesmo. Não valem. Em parte, a má reputação das ciências da
educação tem origem nesta confusão, que as desacredita.
Precisamos todos de saber que nada disto
é novo. Já no final
do século XIX se denunciava
esta pseudo-ciência, inútil, bacoca, palavrosa, da qual, dizia-se, “os professores devem fugir”.
Um investigador em Educação tem de aprender a conhecer
para além das evidências e a encontrar um equilíbrio que lhe permita
lidar com a forma
depreciativa como tantas
vezes se olha para a sua acção.
7. Conhece com a responsabilidade da acção
Em 1942, quando recebeu uma carta do então jovem aspirante a poeta Fernando Sabino, Mário de Andrade deu-lhe algumas sugestões e terminou assim: “E não lhe seria possível botar um bocado mais de responsabilidade
humana colectiva nas suas obras?”20. Uso as palavras de Mário de Andrade para, com elas, levantar o meu sétimo conselho: “Conhece com a responsabilidade da acção”.
Ninguém pode ser investigador em Educação fechado
numa redoma. Quer queiramos
quer não, andamos sempre misturados com as práticas, com as instituições, com as políticas. Mais vale reconhecer esta condição do que
ignorá-la.
Tal como Licínio Lima, que sobre isto escreveu páginas de
grande lucidez, também não me revejo
no tecnicismo, na crença ingénua
no poder da educação, da
pedagogia ou da didáctica para transformar, desde logo a educação escolar, quanto
mais a economia e a sociedade.
Mas isso não me condena nem à miopia nem à indiferença. Antes pelo contrário. Mudei de pele muitas vezes na minha vida. Mas, de cada vez, procurei fazê-lo reflectindo sobre o meu lugar e a minha responsabilidade.
8.
Conhece com
os olhos no país
O nosso compromisso é com a Educação, mas é também
com o país. O oitavo conselho é
mais um pedido: “Conhece com os olhos no país.
Participa na valorização da ciência e da cultura científica”. Há
um traço histórico que explica, melhor do que qualquer outro, as nossas
fragilidades – e esse traço é a desvalorização crónica da ciência.
Aqui ficam os meus conselhos, que começaram por ser muitos e acabaram em oito.
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Carta-texto da conferência proferida no XII Congresso da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação.
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