As armadilhas do identitarismo e as aporias do lugar de fala: ‘colocando os pontos nos is’
Paul Cézanne, Monte Sainte-Victoire
Por Luís Felipe Miguel (Cientista político, Universidade de Brasília)
Faz tempo, eu
decidi me meter na discussão sobre identitarismo, embora sabendo que é cheia de
armadilhas.
A primeira
armadilha é óbvia: é fácil que a crítica à deriva identitária desemboque em um
discurso conservador, de defesa da velha cegueira voluntária às hierarquias
sociais ou da visão “meritocrática” insensível ao peso das desigualdades
estruturais ou sistêmicas na definição das trajetórias individuais. Ou
desemboca então, em uma versão “à esquerda”, por vezes externada por lideranças
políticas ou intelectuais progressistas, na ideia de que só importa a
desigualdade de renda (na versão liberal) ou de classe (na versão marxista).
Outras
armadilhas são mais sutis. Em particular, há o risco de adotar uma postura
paternalista, na forma seja de desculpar as agressões perpetradas por grupos
identitários, com a justificativa de que expressam um ressentimento legítimo e
compreensível, sem maiores consequências, seja de julgar que eles não têm
agência real, sendo meros instrumentos de alguma abstração que os transcende
(tipicamente, “a razão neoliberal”).
São posições
incorretas. O identitarismo não é politicamente irrelevante. Ele não é só um
incômodo lateral no ambiente acadêmico ou nas tretas virtuais, um ruído de
fundo que não interfere nas disputas reais, que seriam aquelas travadas contra
uma direita hoje empoderada.
Longe disso: ele
afeta de forma séria a capacidade que a esquerda tem de enfrentar os desafios
contemporâneos e opera, na prática, na forma de uma tabelinha com a
extrema-direita, em que os dois (e apenas os dois) saem ganhando.
Da mesma
maneira, o identitarismo não é a expressão desencarnada de algum espírito do
tempo. Ele é levado a cabo por agentes interessados, que obtêm vantagens
materiais e simbólicas nada desprezíveis, respondendo a incentivos muito claros
que são oferecidos a quem que se dispõe a essa “rebeldia” dentro e a favor do
sistema.
Apontar a
relação entre identitarismo e neoliberalismo é apenas dizer o óbvio. Ficar
neste nível de generalidade é se evadir do debate. O que é espinhoso é discutir
os mecanismos pelos quais movimentos de índole inicial emancipatória são
cooptados para uma posição que é, ao fim e ao cabo, reacionária – e, no mesmo
passo, instrumentalizados para o benefício privado de seus porta-vozes
autoinstituídos.
Fora tudo isso,
é um debate em que estarei sempre errado, mesmo antes de abrir a boca. Afinal,
quem quer discordar nem precisa saber do que estou falando – basta apontar que
sou homem, branco, hétero.
Já temos aí um
dos problemas do identitarismo: a leitura rasa da noção de perspectiva social
ou mesmo de lugar de fala, como se não fosse um ponto a partir do qual o
discurso se elabora, mas sim já determinasse o discurso. Com isso, o lugar de
fala torna-se um expediente de censura, quando em sua origem expressava uma
demanda de abertura do espaço de debate para outras vozes.
De fato, como
escrevi em Democracia na periferia capitalista (Autêntica,
2022):
A noção de lugar
de fala e outras assemelhadas tiveram e têm importância no combate a certo
idealismo racionalista, que sonha com uma Razão descarnada que interpretaria o
mundo permanecendo fora dele. Elas nos ensinam que toda fala é socialmente
situada – e que isto é relevante para a compreensão de seu sentido. A categoria
“perspectiva social”, elaborada por Young [...], captura esta compreensão de um
modo que marca desde o início o caráter social das posições de
elocução e, portanto, o caráter socialmente produzido das
diversas experiências, sem o apelo a noções essencializantes (ou mesmo
místicas, como “ancestralidade”), que se tornaram tão correntes em alguns usos
da noção de lugar de fala (p. 315).
Ou seja, a ideia
de lugar de fala remetia ao entendimento de que todo discurso é socialmente
posicionado e, portanto, a identidade do falante nunca é irrelevante. As
posições socialmente estruturadas geram perspectivas que informam os discursos.
Por isso, independentemente de seus valores, ideais ou simpatias, mulheres e
homens, negros e brancos, trabalhadores e patrões, gays e héteros, vão
manifestar percepções diferentes de mundo – porque sua experiência no mundo é
informada por pressões e expectativas diversas. Trata-se, enfim, de um
desdobramento das teses marxianas sobre a relação entre pensamento e prática
social.
Isso é um alerta
que visa produzir uma leitura menos ingênua e mais informada de todos os
discursos presentes no mundo social. Não é um veto. Nem as percepções que
sustentavam um privilégio epistêmico dos grupos dominados, como as standpoint
theories dos anos 1970, acreditavam que da experiência vivida
derivaria automaticamente a capacidade de entendê-la e de interpretá-la de
forma crítica ou que se devesse estabelecer uma reserva de mercado no debate
sobre o mundo.
O ponto não é
proibir que alguns falem sobre determinados assuntos, nem dar a outros uma
autoridade ilimitada porque ancorada numa vivência singular. O ponto é sempre
levar em conta de onde partem os discursos, entender que eles externam uma
perspectiva situada, incluir este elemento na apreciação que fazemos deles. O
integrante de um grupo dominado tem uma vivência que permite (potencialmente)
que seu discurso traduza um conhecimento prático que alguém externo ao grupo
não tem como alcançar. Isto é relevante. Mas não faz dele um oráculo, nem reduz
o outro ao silêncio.
Da mesma forma,
a importância de gerar espaços em que integrantes de determinados grupos possam
conversar entre si, sem que suas vozes sejam atropeladas pelas de outros,
dotados de maiores recursos, serve ao propósito de que eles ganhem força para
ingressar no debate público geral, não de criar um monopólio às avessas.
A incompreensão
desta categoria leva ao impedimento do diálogo, assumindo a visão – teórica e
empiricamente insustentável – de que a opressão é transparente para quem a
sofre e completamente opaca para qualquer outro.
Quando o “lugar
de fala” serve para justificar o monopólio do discurso por integrantes de tal
ou qual grupo, a esquerda se desloca da posição de defesa de uma real liberdade
de expressão, em que todos os grupos tenham acesso aos meios para efetiva
participação nos debates públicos, para uma atitude censória. Como o apreço à
liberdade de expressão pela direita é quase sempre hipócrita, caímos em um
mundo – aquele em que vivemos hoje – em que este valor, tão fundamental, se
encontra desguarnecido de partidários leais.
Transformado em
veto, em arma de ataque em batalhas identitárias cada vez mais centradas em si
mesmas, o “lugar de fala” serve para obstruir as articulações entre grupos
dominados e afastar, até mesmo pintar com as cores do inimigo, aqueles que
poderiam ser seus aliados.
Ao mesmo tempo,
a opressão não é transparente para suas vítimas porque um dos dispositivos
centrais da dominação é a imposição de uma representação do mundo que afeta os
próprios dominados. Não vou recorrer aqui à discussão sobre ideologia, na obra
de Marx – que, como eu, seria impugnado por carecer de “lugar de fala”. Mas
posso evocar Simone de Beauvoir, que explicava que, em mundo marcado pela
dominação masculina, a mulher é constrangida a assumir sua relação com o mundo
“por meio de consciências alheias”.
E uma visão
externa – que, sim, sempre carrega as marcas de sua externalidade – pode
contribuir para desnaturalizar o vivido, ampliar a autorreflexão, compor o
processo de objetivação da própria posição, que é passo necessário para
qualquer empreitada emancipatória, e, sobretudo, favorecer a ponte entre a
situação particular e a universalidade.
Mas, nas
leituras identitaristas, a aspiração à universalidade aparece como nociva e
enganosa – e não parte necessária de qualquer projeto político emancipador, na
medida em que inclui a promessa de libertar cada um de nós das nossas particularidades,
isto é, das nossas identidades, que só se constituem em marcadores importantes
porque refletem as estruturas de dominação e nos aprisionam nelas.
Sei que a
palavra “universalidade” virou tabu em alguns círculos; vou falar mais sobre
isso no próximo texto desta série.
Então, para
deixar claro: eu não tenho “lugar de fala”, nem acho que preciso ter. Mas tenho
trajetória (e, justamente pelo fato de que o terreno é minado, creio que é
importante evocá-la aqui, ainda que de maneira telegráfica). Fui um dos
responsáveis pela aprovação das cotas raciais na UnB, que foi a primeira
universidade federal a adotar esse tipo de política. Também trabalho há décadas
com questões de gênero e com teoria política feminista, desde quando essas
temáticas eram absolutamente marginais na Ciência Política brasileira (só um
pouco menos nas Ciências Sociais em geral) e não contavam com financiamentos,
publicações, galardões.
Talvez por isso,
me sinto compelido a travar esse debate – enquanto muita gente da tradição da
esquerda classista, isto é, vinculada à luta de classes, que é a tradição que
me formou, ainda se sente obrigada a abraçar acriticamente o identitarismo, por
medo de parecer desatualizada. (Parece que agora os ventos começam a mudar, mas
ainda serão necessários muitos embates.)
Porque o
primeiro ponto é esse: criticar o identitarismo não é afirmar que as lutas de
mulheres, da população negra, dos povos indígenas ou de gays, lésbicas e
travestis são desimportantes, são secundárias ou, muito menos, que são um
diversionismo. Confundir a desaprovação ao desvio identitarista com a
condenação dos movimentos emancipatórios dos quais ele busca se apropriar é a
manobra do próprio identitarismo para impedir a crítica a seus muitos e graves
limites.
Assim, nunca é
demais repetir: o “identitarismo” criticado não é a luta que tantos grupos travam
por direitos, por respeito, por dignidade. Esta luta é essencial e faz parte de
qualquer projeto de sociedade renovada. Colocar-se contra isto tanto é ocioso
(estes movimentos não vão se silenciar) quanto moral e politicamente
equivocado. Os críticos do identitarismo – ou, de fato, nem todos, mas aqueles
entre os quais me incluo, que somos muitos – não desejam uma volta ao passado,
a uma esquerda sensível apenas à desigualdade material ou à opressão de classe.
O
“identitarismo” que eu e tantos outros criticamos é uma maneira específica de
enquadrar a luta emancipatória que, em resumo:
1) faz de cada
identidade uma “essência”, negando o caráter histórico e conflitivo de sua
fixação;
2) recusa a
possibilidade de diálogo e construção coletiva, isolando cada um em seu grupo
fechado e reificando o pertencimento a esse grupo; e
3) objetiva uma
acomodação na ordem (neo)liberal, com a abertura de nichos de privilégio para
uns poucos integrantes do grupo dominado e a evasão de qualquer enfrentamento
mais sério com as estruturas do capitalismo.
Muita gente não
entendeu ou, melhor, não quis entender isso. Porque este ponto desloca a
discussão: não se trata de colocar em xeque a importância da luta das mulheres,
ou das pessoas negras, ou dos gays, lésbicas e travestis etc. Trata-se de
discutir se um determinado enquadramento destas lutas, por mais que queira
parecer muito “transgressor”, não é, na verdade, conservador, acomodado a
estruturas de dominação e contraproducente para um projeto de transformação
social profunda, radicalmente igualitária, anticapitalista.
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