Identitarismo troca conceitos universais por marcas particulares, afirma historiadora
Historiadora e psicanalsita Elisabeth Roudinesco |
Entrevsita conduzida Naná DeLuca (Folha de São Paulo, Mestre em Letras pela USP)
A historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco, 77, conhecida por biografar grandes pensadores como Sigmund
Freud e Jacques Lacan, diz ter certeza de que "o mundo está se desfazendo
para o nascer de outro". Para ela, isso é bom, mas o percurso errático
dessa transformação a preocupa.
Essa
inquietação é o objeto do seu mais recente livro, "O Eu Soberano" (Zahar), que busca compreender as "derivas
identitárias" — o encerramento sistemático dos sujeitos em identidades
fechadas —, que hoje estão no centro do debate público em vários países. Para
conduzir sua pesquisa, ela se pergunta: como os movimentos emancipatórios do
século 20 se tornaram o que são hoje?
Relendo
clássicos do pensamento francófono, como Aimé Césaire, Frantz Fanon, Jacques Derrida e Michel Foucault, ao lado de importantes
trabalhos atuais, como os de Judith Butler e Gayatri Spivak, a historiadora explora as mudanças
nos conceitos de gênero, raça e identidade para explicar as transformações na
militância e na produção acadêmica da esquerda. O livro também discute o identitarismo da extrema direita, baseado no nacionalismo e no ódio. Para Roudinesco, se
compreende bem isso no Brasil de Jair Bolsonaro.
Em
entrevista à Folha, a historiadora também discute questões sobre o Estado de
Direito, a laicidade, o fanatismo religioso e as mudanças linguísticas para
apontar que o mundo está mudando, "mas ninguém pode dominar essa
transformação".
Por que a sra.
decidiu escrever "O Eu Soberano"? É assunto em voga e um fenômeno que já existe há
30 anos. Os engajamentos identitários e o que chamo de suas derivas começaram
após a queda do Muro de Berlim, com a substituição de questões de classe por
aquelas da identidade.
O que me interessava era olhar a questão do gênero e da raça.
Como chegamos a esse ponto de grande deriva? O que partia de uma boa posição
emancipatória —para mulheres, negros e homossexuais — começou a derivar em
direção a posições hostis à liberdade de expressão. Em nome dessas reivindicações,
hoje se quer proibir textos e destruir estátuas, por exemplo.
Os
autores atuais dos quais trato no livro se inspiram em grandes pensadores, como
Aimé Césaire, que reivindicou a palavra "negro" de forma positiva,
para afirmar uma cultura negra; Frantz Fanon, que nunca adotou uma postura identitária, mas
foi um anticolonialista refinado; em Edward Said e seu trabalho sobre o olhar do
Ocidente para o Oriente; e também em Michel Foucault, Jacques Derrida, Gilles
Deleuze e Jacques Lacan.
Mas
se inspiram em todos esses intelectuais para projetos que nada têm a ver nem
com liberdade nem com emancipação. Quis entender como chegamos a essa deriva e
olhar para o identitarismo de extrema direita, que não tem nada de deriva, pois
sempre foi a mesma coisa.
Qual foi a
recepção do livro na França? O livro foi lançado em um momento de enorme crise de deriva
identitária no país, em março de 2021. Não foi minha intenção. Quando comecei a
escrever, há três anos, o cenário era outro.
O debate explodiu na França com ataques extremamente reacionários,
de um lado, e ultra-esquerdistas, de outro, em um contexto político
bastante complicado. Algo que vocês entendem no Brasil, pois têm um identitário
de extrema direita, Jair Bolsonaro.
Como a identidade passa a ser central no debate
público? A
partir da década de 1980, a identidade passa a ser entendida por "eu sou
eu, isso é tudo" —o sujeito se define, por exemplo, apenas pela cor de sua
pele. Como explico no início do livro, a identidade não é mais "eu sou
como um outro" ou "eu sou todo o mundo" — não são uma identidade
e um sujeito abertos.
A deriva identitária é se definir unicamente por um marcador
particular. Ou seja, abandonar a subjetividade universal e também a
subjetividade da diferença. Definir-se unicamente como negro, por exemplo. Não
é uma reivindicação
como aquelas ligadas à classe, pois é uma marcação territorial e limitada.
E o pensamento interseccional? A
sra. o acha reducionista? De início, é uma excelente ideia. A interseccionalidade já
existia em todos os trabalhos contemporâneos por ser um método comparativo. O
pensamento interseccional é a convergência de lutas. Não tenho nada contra.
O que acho problemático é a manutenção da palavra
"raça", pois cientificamente não existe raça. Há
pigmentações de peles, há culturas, mas não raça. A retomada dessa ideia
não é mais como fez Aimé Césaire —"negro sou, negro fico"—, que
subverte o estigma racista e reivindica a negritude como cultura. Agora
passamos do ponto de reivindicar nossa cultura para reivindicar a raça e marcar
uma identidade.
Como explicar a ideia de deriva de maneira mais ampla? Essa ideia de deriva define
um pouco nosso mundo. No sentido de Derrida, há a ideia de um velho mundo — das
certezas ideológicas, da ordem do patriarcado— que não existe mais. Essa ordem
do mundo foi desfeita.
A
deriva da esquerda é a flutuação que parte rumo a um destino, mas termina por
chegar em seu ponto contrário. Muito diferente do identitarismo e do
nacionalismo da extrema direita, que não deriva nunca, é estático. No caso das
derivas à esquerda, há também a criação de um falar obscuro.
Por exemplo? Palavras como racializado, decolonial, generificado,
cisgeneridade, todo esse novo vocabulário, sistematizado para criar uma
linguagem do pertencimento. Homi Bhabha, traduzido em todo o mundo, creio ser o autor
de falar mais obscuro de que trato no livro. Mas também falo de Gayatri Spivak
e mesmo de Judith Butler.
O que a sra. acha dessas mudanças na linguagem? Adotei uma posição de
nuances. Antigamente, dizia-se sobre uma ministra de Estado, "madame le
ministre" [senhora o ministro]. Hoje, se utiliza o artigo feminino. Acho
positivo, mas a feminização sistemática de palavras gera casos até ridículos. O
mundo está se desfazendo para o nascer de outro, mas ninguém pode dominar essa
transformação. É nesse ponto que critico as derivas identitárias à esquerda.
Dominar em que sentido? Há algo que se desfez, simbólica e
culturalmente, com a conquista de mais igualdade para mulheres, a descriminalização
de homossexuais, toda a questão dos transgêneros emergiu também. Tudo isso é
bom. O que critico é a posição militante de querer dominar aquilo que não se
controla, como a língua.
Uma
vez que algo é incorporado à língua, é impossível controlar. Se tentamos, no
fundo, criamos novos dogmas e impomos um sistema autoritário. Para o
intelectual, é preciso observar e deixar as transformações acontecerem em nossa
sociedade e não buscar extremismos militantes.
O que era vital
nos grandes autores da década de 1960 —Césaire, Derrida, Foucault, Fanon,
Deleuze— é essa característica de pensar profundamente naquilo que se desfazia
na sociedade, sem tentar ordená-la. É por isso, inclusive, que foram muito
atacados pela extrema direita e conservadores.
Qual é a diferença entre o identitarismo da extrema direita e o
da esquerda? O identitarismo da extrema direita é sempre baseado no medo de
ser substituído, no nacionalismo e na afirmação arcaica de que pertencemos a um
território e a uma identidade fixos. É também o ódio por qualquer outro
—imigrante, judeu, árabe, indígena. Esse identitarismo se baseia na ideia de
que nascemos com uma identidade que deve ser conservada.
Isso
não é comparável às derivas identitárias da esquerda, não há simetria. Embora
esses identitarismos coabitem uma mesma época, são processos completamente
distintos.
O identitarismo da extrema direita pode explicar a ascensão de
políticos como Donald Trump ou Jair Bolsonaro? Com certeza, é o medo de que
o mundo mude. Medo do comunismo, dos homossexuais, do fim da nação.
Algo
interessante sobre o identitarismo da extrema direita no Brasil e nos EUA é
que, muito diferente do caso da Europa, essas são sociedades miscigenadas. A
miscigenação é algo formidável.
Para retomar a questão anterior: o que explica que a ascensão de
políticos extremistas, ligada ao identitarismo da extrema direita, seja um
fenômeno simultâneo em tantos países tão diferentes entre si? O mundo é agora multipolar,
em oposição ao mundo bipolar da Guerra Fria. Há uma crise nisso que chamamos de
sociedades ocidentais e será preciso encontrar soluções para dividir as
riquezas. Não podemos deixar povos inteiros na pobreza, ou o nacionalismo e o
populismo continuarão a se reproduzir.
A
principal oposição hoje é o mundo da democracia versus o mundo das ditaduras, e
a democracia está muito frágil. A França está fragilizada pelo aumento do islamismo radical, uma reivindicação
identitária.
Em 1989, Lévi-Strauss afirmou em entrevista à Folha que
sentia sua cultura ameaçada pelo islã. Esse sentimento de ameaça permanece na
França? Sua
crítica não era à religião islâmica, mas à ideia de dominação. Primeiro, é
preciso dizer que não se pode atacar muçulmanos, que hoje na Europa ocupam um
lugar muito parecido com o que os judeus ocuparam outrora. O que é preciso
criticar é o fanatismo religioso, uma deriva identitária.
Na
Europa, o islã é uma religião que integramos à nossa sociedade, diferente do
Brasil, em que isso não é uma questão. Contudo, no Brasil vocês têm outro
perigo, outra forma de fanatismo religioso: o evangélico. Para escapar ao
fanatismo, é preciso integrar a religião e os religiosos à laicidade do Estado.
O modelo brasileiro de Estado laico é muito diferente da laicidade francesa. Com certeza, a França tem um
modelo único. Mesmo os EUA e a Inglaterra, do ponto de vista francês, não são
países laicos. O presidente dos EUA faz seu juramento com a mão sobre a Bíblia.
Na Inglaterra, há uma monarquia. Nada parecido com a França, onde cortamos a
cabeça do rei e fundamos uma laicidade muito particular.
O
modelo de Estado laico francês não é exportável a outros países. Ele deve ser
defendido, é parte de nossa tradição.
Qual é a diferença entre o identitarismo em países colonizados e
em países colonizadores? Essa pergunta está no coração do debate que proponho no livro.
Há um movimento que começa a se desenhar, uma guerra da memória. Nos países
outrora colonizados, os povos oprimidos reivindicam agora sua própria memória,
uma memória da perseguição.
Contudo,
não se pode destruir estátuas, censurar a história de um país. A história é
complexa. Países colonizados tiveram colaboracionistas, e países colonizadores
tiveram anticolonialistas. O que deve ser feito é olhar o passado por todos os
lados. É preciso fazer a memória compartilhada, algo que tentamos fazer na
França em relação à Argélia. A memória compartilhada é a única solução, ainda
que muito complexa.
No Brasil, discute-se o conceito de racismo
estrutural. O que a sra. acha desse conceito? Nós o chamamos de racismo sistêmico. Na França, não há
racismo sistêmico no nível do Estado. É a lei. Eu não concordo com o
posicionamento decolonial que afirma que o racismo seja estrutural ao Estado,
pois essa afirmação não é precisa. Não se pode confundir a sociedade civil e
o Estado.
Por que a extrema direita é tão atraída por movimentos conspiracionistas, como o QAnon? A extrema direita é
essencialmente conspiracionista, imagina sempre um complô. Na França, mesmo
antes da Revolução de 1789, já existiam conspirações de um complô judeu. O
conspiracionismo caracteriza as ditaduras.
Hoje em dia, o conspiracionismo é ativado maciçamente pelas
redes sociais, que são um lixo, sempre terreno fértil para conspirações. Vimos
isso com os movimentos antivacina.
Todo
conspiracionismo ignora a realidade. Seja o pior dos conspiracionismos, como o
antijudeu, que culminou no Holocausto, seja o movimento antivacina, todos se
baseiam no medo e no terror de um estrangeiro, de um outro.
E o medo de uma ameaça comunista? Também é um
conspiracionismo. A extrema direita teme um comunismo que não existe mais. O
que é “fascinante” é que não é necessária a presença da realidade, nem do
objeto do ódio, para que o conspiracionismo floresça. Há, por exemplo,
conspirações antissemitas em países onde não há judeus.
É
esta a grande característica da extrema direita: ela acredita em conspirações
baseadas em coisas que não existem. Tem-se medo a vida toda do comunismo, que
não existe mais.
O que me causa mais receio é que a extrema direita não é
acessível pela razão, pois se baseia no medo e, contra isso, não há pedagogia
possível. O conspiracionismo, a meu ver, é uma doença mental.
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Fonte: Folha de São Paulo
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