Pesquisa interpelante e a escrita da transformação
Entrevista orginalmente publicada pela Revista Comunei - Em Comum
Perfil do entrevistado: Ao 15 anos, integrou-se à luta
política, numa trajetória simultânea de militância e estudo: ativista no
movimento estudantil secundarista em Pernambuco, presidente de Diretório
Central de Estudantes na universidade, atuação/assessor no movimento sindical
docente, integrante de uma organização política clandestina/defensora da luta
armada no período final da Ditadura Militar/de transição à Democracia, dirigente
do Partido dos Trabalhadores (Presidente do partido numa cidade pernambucana e
membro da sua direção no estado). Pelo caminho, enfrentou os resquícios do
famigerado Decreto 477 da Ditadura Militar e foi impedido, por um tempo, de
frequentar a universidade (suspenso de curso), tendo respondido a processo
judicial, por sua atuação político-social, sob ameaça de detenção. Em meio a
tudo isso, enveredou-se pelo caminho de artes como a literatura. Com essa
história de vida, Ivonaldo Neres Leite,
após cerca de vinte anos de militância no Partido dos Trabalhadores,
desligou-se dessa organização política nos anos 2000, deixando, então, de ter
vinculação partidária orgânica, mas mantendo relação com o campo progressista e
sustentando os ideais da mudança social. Tem raízes na Educação Popular desde
os anos 1990, pela atuação militante e de quando, no então Mestrado em Educação
da UFPB, foi um dos editores dos Cadernos de Educação Popular, referentes à
produção discente. Estudou fora do Brasil (PhD e Pós-doutoramento), transitando
entre a História, Sociologia e Educação, e verticalizando a sua formação como
sociólogo. Atualmente, é professor na Universidade Federal da Paraíba e tem
mantido colaborações com instituições latino-americanas, europeias e asiáticas.
Publicou cerca de 200 trabalhos em
português, espanhol, inglês e francês, e tem marcado posição no debate internacional e latino-americano
sobre educação e política, com intervenções frequentes no portal Rebelión
e na revista portuguesa A Página da Educação, onde é colunista. O
seu trabalho An Education for Outsiders: Popular Education recebeu
menção honrosa na categoria ensaio por parte do periódico onde foi publicado (Journal
for Critical Education Policy Studies, Londres/Inglaterra). De origem
judaica sefardita, exerce militância pela causa palestina no movimento Global
Jews for Palestine (Judeus Globais pela Palestina), assim como atua pela
causa ecológica, para fazer frente à crise ambiental, na Global Ecosocialist
Network. Ademais, integra a Rede Reflexión Latinoamericana, sediada
no Uruguai, e é um dos protagonistas do Projeto Lusitano O Comuneiro,
que tem como foco o debate analítico e a intervenção na realidade a partir da
renovação do legado marxiano. Este é um resumo do perfil do nosso
entrevistado. A seguir, a entrevista.
A Cavalaria Vermelha, de Kazimir Malevich |
Ivonaldo Leite: Já faz um bom tempo dessa entrevista, e
eu praticamente não a tenho mais presente...
É de
Maio de 2006, e tem como título ‘O sindicalismo tem de ir além do
discurso panfletário e das palavras de ordem’ (disponível aqui: https://www.apagina.pt/?aba=7&cat=156&doc=11549&mid=2)
Ivonaldo Leite: Tá, recordo.
Voltando à questão que coloca, não. Os sistemas de dominação e opressão não
estão mais fracos hoje.
Em Comum: Por quê? As
pessoas não têm mais flexibilidade, nas redes sociais não expressam as suas
opiniões?
Ivonaldo Leite: Possivelmente, um
dos problemas esteja exatamente por aí, com a falta de conhecimento e de
entendimento sobre as coisas. Comecemos pelo básico: atualmente, cinco
países de língua inglesa (Estados
Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia) mantêm uma aliança
chamada ‘Five Eyes’ [Cinco Olhos] que tem como objetivo monitorar informações,
realizar vigilância de ciberinteligência e interceptar comunicações que
circulam em torno do globo. Isso
significa dizer que todas as comunicações eletrônicas que passam pelas Big
Techs de origem anglo-americana, como é o nosso caso, estão sob
monitoramento. Os russos, os chineses e, em certa medida, os indianos, no
contexto da disputa geopolítica, estão tentando configurar os seus próprios
sistemas para se protegerem, e, nesse sentido, chegam até mesmo a bloquear Big
Techs anglo-americanas. Nesse quadro, investem pesadamente em conhecimento
científico e tratam a avaliação nos sistemas educativos com rigor. Sabem bem
que, sem isso, serão dependentes e dominados pelos tentáculos anglo-americanos,
tendo os Estados Unidos à frente, com as suas 800 bases militares espalhadas
pelo mundo, resultado de um gigantesco complexo industrial-militar que, junto
com o dólar como moeda de reserva internacional e com o aparato
ideológico-cultural (onde Hollywood é peça central), constituem o tripé da
hegemonia estadunidense. Para que se tenha uma ideia disso, basta lembrar as
várias invasões de países patrocinadas pelos Estados e um fato peculiar que
envolveu a ex-Presidente Dilma Rousseff antes de ser deposta pela quartelada parlamentar de
2016: ela foi constantemente espionada pela CIA, assim como também foi até a
ex-Chanceler alemã Ângela Merkel. Bom, apesar da flexibilidade para as
postagens nas redes sociais, os sistemas de dominação e de opressão foram reconfigurados
pela mão quase invisível do chamado capitalismo cognitivo, que, pela
manipulando de algoritmos, se apropria da mente das pessoas. Ademais, cliques e
postagens alimentam o mercado inaugurado pelo capitalismo cognitivo. Ingenuamente,
os ditos guerrilheiros tecnológicos dos anos 1990 imaginaram que a ascensão das
tecnologias da informação traria uma nova era de liberdade e prosperidade
equalizadora. Atualmente, os algoritmos estão em toda parte, mas o que as pesquisas especializadas mostram são
monopólios digitais levando-nos a uma lógica feudal de desapropriação e
dominação pessoal, e de promoção, muitas vezes, de sofrimento psíquico. Esses
são os territórios comandados por Bezos, Zuckergerg, Musk e companhia, os
senhores feudais do século XXI, conforme aponta Yanis Varoufakis com a sua
abordagem sobre o tecnofeudalismo.
Em Comum: E como levar
adiante a mudança social nesse cenário?
Ivonaldo Leite: Considere-se o
seguinte: a mudança social, conforme as experiências históricas e a sociologia política
têm demonstrado, depende, fundamentalmente, de três fatores: de uma entidade
organizadora vitalizada que galvanize o sentimento de transformação e sistematize a ação; de
lideranças que, com energia, impulsionem o processo; e o acúmulo de estudo referente
à capacidade analítica para, relacionando teoria e prática, saber realizar
análise de conjuntura, situar os seus elementos quanto à estrutura, e assim
definir o que é tático e o que é
estratégico, o momento de avançar, deter-se ou recuar. Sem a coligação desses
fatores, a Revolução Russa de Outubro de 1917, por exemplo, não teria ocorrido.
Ou seja, sem a força do Partido Bolchevique, sem a capacidade de lideranças
como Lênin e Trotsky, e sem o acúmulo de estudo e pesquisa que, em Lênin, está
refletido em obras como As Teses de Abril, O Estado e a Revolução,
Que Fazer?, Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, O
Imperialismo - Etapa Superior do Capitalismo, a revolução não teria triunfado. De resto,
cabe relembrar a consigna leninista sobre o “combustível” para a prática
transformadora: sem teoria revolucionária, não pode haver movimento
revolucionário. Cada um pergunte, de si para si, num exercício de autorreflexão
sincero, se essas três condições, ou melhor, os referidos três fatores estão
reunidos no Brasil de hoje.
Em Comum: Qual é a sua
resposta?
Ivonaldo Leite: Não estão. E
possivelmente não estarão por um longo tempo. Há um imenso trabalho
político-educativo a ser feito, por um lado, e, ao mesmo tempo, por outro
lado, é urgente definir e afinar os
marcos teórico-analíticos para uma mudança social que não se reduza apenas à repetição
das mesmas palavras, dos mesmos discursos, sem substância, para as mesmas
pessoas. Qual projeto de mudança mesmo se propõe? Quais são as suas linhas
mestras? Não faz muito tempo, o Fernando Hadadd foi paradigmático a esse
respeito: “A esquerda está se devendo isso. Mais formulação teórica, mais
aprendizado, mais ousadia na reflexão sobre o que é possível fazer”. Como era
de se esperar, ele foi duramente criticado por setores da própria esquerda, até
mesmo de forma desonesta, como não poucas vezes acontece nessas situações, mas,
nesse caso, estava, e está, certo. Penso que a ascensão de um projeto de
mudança social não é algo mais ao alcance da minha geração, a geração que,
nova, muito nova, empenhou coração, mente e mãos na luta para derrubar a
Ditadura Militar e fazer o país transitar para a democracia. E que pagou um
preço por isso, em determinados casos, muito alto.
Em Comum: Mas, e o poder
dos movimentos sociais?
Ivonaldo Leite: Vamos por partes.
O que, muitas vezes, atualmente, se chama, de forma benevolente, de
movimentos sociais são burocracias que merecem os qualificativos da sociologia
dos partidos políticos de Robert Michels, e também de algumas das abordagens do
saudoso pensador libertário Maurício Tragtenberg. Têm pouco de movimentos
sociais ou mesmo nada. Nos termos de Michels, são burocracias oligarquizadas,
que revezam indefinidamente os seus (e às vezes nem isso) na manutenção das
estruturas das organizações, em função de dividendos, conforme alguns estudos
sobre sindicatos têm mostrado. Aparelham as organizações, representam a eles
mesmos e aos seus interesses. Como consequência, não têm poder de mobilização,
perderam a capacidade de liderar. Basta ver como determinadas assembleias e
manifestações de movimentos, como o sindical, têm sido esvaziadas.
Em Comum: Porém, deve ser
considerado que são organizações que surgem em oposição ao sistema?
Ivonaldo Leite: Diz bem, surgem. Contudo,
tenha-se em atenção que há uma dialética do instituído e do instituinte. Mesmo
organizações que surgem na contracorrente podem arrefecer o seu caráter
instituinte (de movimento), tornando-se, por suas práticas e sociabilidades, entes
da esfera do instituído, mesmo que continuem a reproduzir discursos
supostamente críticos. Nestes casos, os supostos discursos críticos têm mais
uma marca simbólica, para procurar assegurar que o sentido original dessas
organizações continue sendo credível. Na prática, contudo, tais discursos
funcionam como uma espécie de mercadoria (intangível) manuseada conforme os interesses
de quem os profere. Nesse particular, não é muito diferente do que, no mais das
vezes, se passa no contexto acadêmico.
Em Comum: Como assim?
Ivonaldo Leite. Para início de
conversa, tenhamos em atenção um postulado fundamental de Pierre Bourdieu no
que concerne aos campos, e a sua relação
com o contexto acadêmico, ou seja: o campo científico é um lugar de luta
concorrencial, embora não seja só isso, ressalto. Mas, nele, se encontra em
jogo o monopólio da autoridade acadêmica para falar e o acúmulo de um tipo de
capital, o capital científico. Este tipo de capital define não apenas as normas
do jogo acadêmico, mas também as suas regularidades, os procedimentos segundo
os quais vão se distribuir os lucros desse jogo. Eventos e publicações, por
exemplo, são formas de se angariar capital científico. Daí entende-se que se
tenha, sobretudo atualmente, uma multiplicação de eventos, muitos repetitivos e
sem discussão analítica digna desse nome, e uma indústria de produção de
artigos assinados por fileiras de autores que sequer leram os textos, e não
entendem do que eles tratam. São não só de qualidade duvidosa, mas, por vezes,
resvalam mesmo para a cópia e o plágio. Nesse contexto, as perspectivas
críticas perdem a sua criticidade, embora ela seja repetida, e são
transformadas em mercadorias para alimentar o mercado de publicação, e assim
garantir capital científico aos autores que assinam os textos. Mesmo que não
tenham participado da produção dos artigos e, por vezes, sequer entendam as
questões que neles são abordadas. Não vou aqui, até por uma questão de falta espaço,
entrar nas nuances das questões éticas aí implicadas, mas elas são profundas,
ainda mais quando se proclama a pertença a um enfoque educacional crítico. Já
para não falar no grau de alienação acadêmica aí contido, ao modo marxiano: a
separação entre um produto intelectivo e os seus autores oficiais.
Em Comum: Mas não são as
regras do jogo da vida acadêmica?
Ivonaldo Leite: A questão é que
é necessário ser considerado o jogo das regras.
Pode-se até admitir a participação nisso, e mesmo compreender, mas o
entendimento do jogo das regras deve - ou deveria - levar quem está nessa arena
a ter claro que essa avalanche de “produções” (capriche nas aspas),
fundamentalmente, com o seu caráter reprodutivo, está relacionada a três
problemas: primeiro, ao neoliberalismo acadêmico (aliás, não deixa de ser
irônico ver pessoas que se dizem críticas às perspectivas neoliberais atoladas
na maré do neoliberalismo acadêmico – no seu trabalho Resisting Academic
Neoliberalism, Mark Davis é emblemático a respeito); segundo, à perda da
potência crítica das abordagens que supostamente são críticas (ou eram em suas
origens); terceiro, ao fato de que livros, artigos, etc., vindos a lume sob
essa lógica, basicamente se restringem às idiossincrasias do campo em que estão
situados, alimentando-o e empoderando os seus agentes, conforme o jogo de
interesses para acumular capital. Nesse sentido, o marketing funciona como
dispositivo acessório para assegurar o êxito da empreitada. Pode-se dizer o
mesmo de alguns dos chamados ‘lugares da memória’, que, ao serem instituídos e
institucionalizados, levaram as memórias que querem guardar ou cultivar a
perder as suas valências insubmissas, com tais lugares passando a servir a
outros propósitos.
Em Comum: As pessoas
envolvidas nisso se comportam assim propositalmente, tendo ciência do que
acontece?
Ivonaldo Leite: Não, em boa parte
dos casos. Porque esse é o terreno do conhecimento metacientífico, ou seja, é a
esfera da reflexão do conhecimento sobre si próprio, que dizer, a esfera da
problematização analítica sobre o significado do conhecimento e a sua produção,
onde distintas ciências são acionadas de forma inter-relacionada, como a
História da Ciência e a Sociologia do Conhecimento. Em princípio, a
pós-graduação é um espaço do conhecimento metacientífico, mas, na medida em que
ela se limita a uma postura reprodutivista ou a fazer proclamações exógenas ao
âmbito analítico e de produção do conhecimento, perde tal sentido e tende a se
converter numa versão repaginada de curso de graduação.
Em Comum: Sobre esse
caráter reprodutivista, fica, então, a impressão que há desconhecimento ou
desprezo sobre o sentido autoral e epistêmico da escrita, prevalecendo as
visões mecânicas que contrariam a lógica da produção autônoma e
problematizadora do conhecimento.
Ivonaldo Leite: A depender de cada
caso, tanto uma coisa como outra (desconhecimento e desprezo), ou a combinação das duas. Não é uma questão
secundária, e tem até mesmo variáveis psíquicas implicadas. Devemos a Vygotsky
a primeira reflexão relevante sobre o assunto, tratando das características da
escrita e de suas consequências no
funcionamento mental das pessoas. Quando vivi fora do Brasil, certa feita participei,
como militante político-pedagógico, de
um projeto de psicossociologia voltado ao bilinguismo e à interculturalidade
com imigrantes de países do leste europeu, outrora pertencentes ao bloco
geopolítico da ex-União Soviética. Pela prática, então, fiquei ainda mais
convencido das abordagens de Vygotsky sobre a temática. Efetivamente, há um
entrelaçamento entre pensamento e linguagem, e o modo de escrever, em
determinada medida, molda o pensamento.
Se alguém se limita a uma escrita burocrática, onde o modo impessoal é cimeiro,
a capacidade de pensar reflexivamente, de forma autônoma e com ideias próprias,
também se torna limitada, bloqueando o desenvolvimento, na escrita, de
perspectivas problematizadoras. Daí fica-se, mecanicamente, na mera repetição e
reprodução do conhecimento já produzido. O que, no caso dos trabalhos de pós-graduação,
principalmente de teses, é uma contradição em relação ao caráter deles. Vygotsky
realiza uma caracterização da linguagem interiorizada e uma análise da relação entre
essa e a linguagem escrita, que ele explica em termos da passagem de uma
linguagem condensada, de caráter preditivo, centrada na dimensão pessoal, a uma
linguagem expandida, explícita e referenciada na sintaxe e no significado. É
isso que explica o enorme potencial da escrita como instrumento de
autorregulação cognitiva e de tomada de consciência. Por vias equivalentes,
também chegamos aos processos de leitura, dado que há um tipo de leitura
mecânica, reforçado atualmente, em muitos casos, pela aceleração do mundo
virtual e pelo modo de ler eletrônico – que é, por vezes, uma não leitura. Assomando-se
à abordagem clássica de Vygotsky, os trabalhos, por exemplo, de Mariana Miras,
Linda Flower, John Rayes, Carl Bereiter e Marlene Scardamalia são
paradigmáticos a respeito. O título de um artigo de Mariana Miras, aliás, é
bastante emblemático: La escritura
reflexiva: aprender a escribir y aprender acerca de lo que se escribe.
Em Comum: Em síntese, como
apresentar os traços fundamentais dessa escrita diferenciada?
Ivonaldo Leite: É uma escrita que
tem recebido várias denominações, como escrita epistêmica, escrita reflexiva e
‘escrever para aprender’. As duas primeiras denominações são as mais
conhecidas. Há também quem se inspire em legados latino-americanos da Educação
Popular para falar em escritura problematizadora (a escrita
problematizadora). O fundamental é que pesquisas contemporâneas, como as dos autores que mencionei antes, têm se dedicado ao estudo em profundidade do
ato de escrever. Têm realçado a dupla função da escrita, isto é: a função
comunicativa: interagir com as pessoas através dos textos, comunicando-se a
respeito do que se escreve; e a função
representativa ou ideacional (de ideia, idealizar/projetar mentalmente algo):
ato de representar, criar ou recriar situações e objetos no pensamento por
parte de quem está escrevendo. As pesquisas também têm destacado que a
linguagem escrita pode ser um instrumento poderoso para a autorregulação
cognitiva/intelectual, principalmente porque ela tem um diferencial em relação
à linguagem oral. Este diferencial reside em aspectos como: as regras da
linguagem escrita são mais estritas e constritivas (fator léxico e sintático);
há uma ausência de contexto compartilhado entre o produtor e o destinatário do
texto (o que requer que o produtor explique ao máximo o conteúdo para se fazer
entender); c) acionamento de um funcionamento psíquico mais complexo
(monologia: reflexão/’conversa’ do produtor do texto com ele mesmo a respeito do que
está escrevendo).
Em Comum: Existem indicações ou diretrizes quanto ao modo de escrever reflexivamente ou de forma epistêmica?
Ivonaldo Leite: Bom, em geral, são apontados dois modelos: um referente a um paradigma de planejamento, textualização e revisão, que encontra referência em autores como Linda Flower e John Rayes, e outro concernente à concepção de transformação do conhecimento, cujo referencial está nos enfoques de Carl Bereiter e Marlene Scardamalia. Possivelmente, é esse último modelo que mais se detém na sistematização do processo de escrita epistêmica/reflexiva, avançando com a forma de desenvolvimento dela. Orienta-se por alguns procedimentos básicos, tais como: estabelecimento de objetivos para o que se vai escrever, problematização do processo de escrita/questionamento do escrito, e representação mental da tarefa de escrever (refletir-dizer-refletir). Enfatiza que, à medida que o autor analisa o tema/problema sobre o qual escreverá e estabelece os objetivos concretos para o texto, são gerados dois espaços-problema: o espaço do conteúdo (o que dizer) e o espaço problema-retórico (com que intenção e como dizer). Nestes dois espaços, são produzidas as operações que modificam o conhecimento do autor e do texto, e até mesmo os seus próprios objetivos. São modificações possíveis graças à interação dialética entre os dois espaços ao longo da produção textual.
Em Comum: É algo que alguém pode alcançar por si próprio?
Ivonaldo Leite: Bem, a aprendizagem sistematizada requer acompanhamento, e, na Modernidade, pelo menos desde a concepção pedagógica de Comenius, com a sua Didática Magna e a arte de ensinar tudo a todos, o sujeito mediador é imprescindível no processo educativo. As pesquisas realçam que a escrita epistêmica é um objetivo a ser alcançado e desenvolvido, não sendo, portanto, algo intrínseco à pessoa. Para tanto, requer-se prática e acompanhamento/supervisão de um mediador que oriente o processo de escrita.
Afinal, escrever reflexivamente pressupõe um certo
domínio de habilidades. Isto explica,
conforme as investigações, por que o ato de escrever é, para determinadas
pessoas, um obstáculo mais do que um meio que ajuda a pensar, a aprender
conhecimentos novos e a transformar conhecimentos antigos. Algumas condições
individuais têm sido apontadas como essenciais para o desenvolvimento da
escrita reflexiva, tais como a capacidade (e a intenção) do autor de refletir e
questionar sobre os seus próprios conhecimentos, a habilidade de identificar os
aspectos confusos e contraditórios no seu texto, a capacidade de ler de maneira
estratégica e de reler-se a si mesmo com rigor. No resumo das contas, conforme
diz a professora espanhola Marina Miras, escrever, e especialmente
reflexivamente, significa poder: tentar fazer com que os alunos entendam isso
deve ser um objetivo essencial dos processos de escolarização (na Escola Básica
e na Universidade). A escrita reflexiva é uma ferramenta poderosa que pode ser
ensinada aos estudantes para os ajudar a aprender e a continuar aprendendo ao
longo da vida, assimilando conhecimentos, transformando-os, mudando a sua
realidade e da sociedade em geral. Sem essa dimensão epistêmica/reflexiva, até
mesmo os supostos saberes “contestadores” e teorias críticas tornam-se
meramente mecânicos e reprodutivos, sendo infinitamente repetidos sem nenhum
efeito prático e emancipatório.
Em Comum: Esse quadro geral tem uma relação direta com os desafios para pesquisa e a prática em Educação Popular, de acordo?
Ivonaldo Leite: Sem a menor dúvida, mas isso merece uma abordagem específica, e não há como desenvolvê-la aqui. Limito-me apenas a realçar algumas curtíssimas notas. E parto de uma afirmação do saudoso Álvaro Vieira Pinto, que forneceu bases para muitas das abordagens de Paulo Freire e da Educação Popular, como o conceito de conscientização, conforme o próprio Freire reconheceu como tendo assimilado dele, chamando-o de ‘meu mestre’. Numa das últimas entrevistas nos anos 1980, sistematizada por Dermeval Saviani, diz Vieira Pinto que “é preciso que o êxito de uma determinada atitude pedagógica não se transforme em um obstáculo ao prosseguimento do curso da própria educação. E acrescenta: os métodos bem-sucedidos, como o de Paulo Freire, podem acabar se tornando um quisto, uma coisa que impede o prosseguimento do seu próprio desenvolvimento.” Isso aparece nas páginas iniciais do seu livro Sete Lições sobre Educação de Adultos. Essa é uma perspectiva que merece reflexão no campo da Educação Popular brasileira atualmente. Uma segunda nota a ter em conta refere-se à necessidade de estabelecer ou reestabelecer o debate plural no campo da Educação Popular. No distante ano de 1996, fui um dos organizadores, junto com o professor Alder Júlio e outros/as companheiros/as, do Primeiro Seminário Educação e Movimentos Sociais, no então Mestrado em Educação Popular/UFPB, recebendo participantes de todo o Brasil, e onde prevaleceu um frutífero debate plural em torno de posições diferentes sobre as várias temáticas da Educação Popular, inclusive havendo reflexão crítica e autocrítica em torno dos próprios movimentos. Divergências inerentes ao movimento dialético em torno do desenvolvimento do conhecimento, como, aliás, também é próprio da discussão universitária e do processo de pesquisa. No ano de 1997, o próprio GT de Educação Popular da ANPEd reuniu-se num intercâmbio de pesquisadores/as em João Pessoa para um profundo debate em volta das distintas visões acerca dos desafios da Educação Popular, sob a coordenação da professora Marisa Vorraber e tendo a participação, entre outros, do saudoso João Francisco e de Wojciech Andrzej Kulesza. Essa tradição de debate plural e divergente, mas cordial, na área da Educação Popular tem arrefecido, e tem até mesmo sido objeto de intolerância. É difícil imaginar uma área de conhecimento avançado quando, nela, há recusa em conhecer o diferente e com ele debater, limitando-se a repetir as mesmas coisas de sempre de modo laudatório. A adequada assimilação do método dialético tem um “diagnóstico” a esse respeito: tal postura significa liquidar o movimento da dialética, que, por óbvio, está imbricada na tríade tese, antítese e síntese, o que significa dizer negação da negação, luta de contrários, passagem da quantidade à qualidade, etc. Uma terceira nota concerne à imprescindibilidade de diálogo da Educação Popular brasileira com o conjunto das abordagens desenvolvidas nos demais países da América Latina, onde avanços significativos de formulação têm sido registrados diante dos novos fenômenos e problemáticas contemporâneas, que, por suposto, não se apresentavam à Educação Popular nos anos 1960. É de se notar o vibrante papel que jovens pesquisadores/as e educadores/as populares têm desempenhado em países como Colômbia e Uruguai. Vão se constituindo na esperança para o desenho futuro da Educação Popular e para o alcance dos projetos de mudança social. Aliás, e esta é a última nota que desejo realçar, são eles/as que têm dado uma contribuição fundamental ao escopo renovado da Educação Popular, ao colocar a escola formal como um dos seus focos prioritários (as peculiaridades do seu cotidiano), considerando a relevância, como o faz o Movimento Integral de Educação Popular Fé e Alegria, de proporcionar aos filhos das classes populares o acesso ao conhecimento sistematizado, aos saberes produzidos pela ciência, como condição para que mudem de vida, e seja desencadeado um processo de mudança mais amplo na sociedade.
Em Comum: E qual análise pode ser realizada sobre o tema das identidades?
Ivonaldo Leite: Não gostava de me estender nessa questão, pois, não havendo possibilidade aqui de desenvolver a devida apreciação, a probabilidade de o que eu diga ser objeto de mal-entendido é grande. É certo que, quando se lida com a má-fé, a desonestidade intelectual e a falta de mente aberta ao debate plural, a deturpação e a ‘queimação’, principalmente nos bastidores e corredores universitários, vêm de qualquer jeito. Não é algo, contudo, que me incomoda nem um pouco, afinal, como diz o aforismo judaico, “o asno se conhece pelas orelhas, o tolo pela língua”. Apenas não quero, de barato, dar munição. Relativamente à questão, fico por dizer que é imperativo que se realize a diferenciação entre o sentido do que são as identidades e o que é o identitarismo, com a sua atomização intolerante e ignorante. Felizmente, ultimamente, tem aumento o número de abordagens, com chancela analítica e sustentação empírica, colocando as coisas no lugar. Como diria Saramago, “se podes olhar, vê; se podes ver, repara.”
Em Comum: Vamos à última pergunta: a mudança, o novo, sempre vem, como cantou Elis Regina, ecoando Belchior?
Ivonaldo Leite: Boas referências musicais! Quanto à pergunta, considerando as dimensões específicas do que tratamos aqui, a mudança virá se o processo de pesquisa for interpelante. Rosa Luxemburgo costumava dizer que uma das coisas mais revolucionárias que se pode fazer é dizer, em alta voz, o que está acontecendo. Principalmente, penso eu, do ponto de vista do conhecimento, conforme sublinhou Bourdieu, quando se tem interesse em saber e em fazer saber a verdade, desvendando o que está ocultado nas relações sociais e desconstruindo as categorias de pensamento impensadas, formatadas pelo habitus, que delimitam o pensável e predeterminam o pensado.