Capitalismo, a preponderância do conceito de classe social e os equívocos das abordagens sobre raça e racismo
A questão racial vem sendo abordada sob as mais variadas perspectivas teóricas, mas poucas são as análises marxistas a seu respeito. Consideramos que a busca da compreensão do racismo remete, necessariamente, aos recursos teóricos do materialismo histórico-dialético e é este o procedimento que será adotado aqui. Por conseguinte, o estudo do racismo, sob perspectiva marxista, nos obriga a procurarmos na história e no conjunto das relações sociais a sua origem e as determinações que possibilitam sua reprodução nas sociedades capitalistas contemporâneas.
O racismo não é apenas uma ideologia. Ele é, também, um conjunto de
práticas sociais. O racismo é uma prática social de discriminação racial. Essa
prática discriminatória não ocorre apenas no mundo das ideias e valores, mas
também no mercado de trabalho, no nível de renda, nas relações de poder, etc.
Podemos dizer que é o racismo (conjunto de práticas sociais de discriminação
racial) que cria a ideologia racista, ou seja, a ideologia vem a posteriori para justificar o racismo, tal como
definido acima. Não é a ideologia racista que cria o racismo, mas, ao
contrário, é o racismo que cria a ideologia racista. Portanto, o racismo é a
“fonte” da ideologia racista. Contudo, uma vez existindo, a ideologia racista
reforça o racismo. A ideologia racista, como toda ideologia, é mobilizadora,
isto é, produz práticas e, desta forma, gera racismo, criando um círculo
reprodutor que dificulta a compreensão de que a origem e essência deste
fenômeno se encontra nas relações raciais concretas.
Mas falar em racismo pressupõe a definição do conceito de raça. A definição
desse conceito é tão variada que alguns, partindo de sua definição, sustentam
que existem apenas duas raças enquanto que outros afirmam que existem duzentas
raças. Também já se defendeu a identidade do conceito de raça com outros
conceitos, tais como: casta, classe, etc. A definição que consideramos mais
correta é a que coloca que ela é expressão das diferenças físicas entre membros
da espécie humana. Porém, tais diferenças são apenas na aparência física, são
diferenças fenotípicas.
Entretanto, não existe nenhuma fundamentação para se afirmar que existe
superioridade de uma raça sobre outra, pois estas diferenças de caracteres
físicos não fornecem nenhuma vantagem mental, moral ou física de uma raça sobre
outra. Além disso, o desenvolvimento físico, mental e moral do ser humano é
condicionado socialmente e, portanto, as diferenças só podem ser explicadas
pelo seu contexto social e histórico e não por diferenças raciais.
Concordamos, portanto, com a definição de raça apresentada por John Lewis:
“Define-se uma raça como sendo um grupo que tem em comum, certo conjunto de
caracteres físicos inatos e uma origem geográfica dentro de certa área. Existem
três raças maiores assim definíveis – a caucasóide, a mongolóide e a negróide –
além de algumas raças menores. Estas raças originaram-se quando ocorreram
variações em alguma raça perdida, em diversas partes do mundo onde, durante
séculos, o isolamento manteve separado os tipos resultantes. Entretanto, as
raças secundárias não conservaram o menor grau de pureza” (Lewis,1968, p. 106)[1].
A partir desta definição do conceito de raça, podemos definir o que são
relações raciais. Segundo Oliver Cox, as relações raciais são “o comportamento
que se desenvolve entre as pessoas que estão conscientes das respectivas
diferenças físicas, autênticas ou imputadas” (apud. Banton, 1979, p. 149).
Entretanto, é necessário um esclarecimento sobre as diferenças físicas
“imputadas”: as relações raciais possuem sua particularidade mas não estão
desligadas das demais relações sociais (“econômicas”, “políticas”, culturais,
etc.) e estas são, geralmente, dominadas pela visão ideológica sobre elas e
isto cria a possibilidade de se imputar diferenças físicas inexistentes, pois
no conjunto das relações sociais isto pode ser vantajoso para determinados
grupos e indivíduos.
Portanto, precisamos descobrir sob quais relações sociais surge o racismo e
que tipos de relações sociais tornam possível sua reprodução. Somente uma
análise histórica poderá nos esclarecer sobre essas questões. Se analisarmos o
período histórico que abrange o escravismo antigo até o século 16 não veremos
nenhum caso de discriminação racial, pois, tal como colocou o antropólogo R.
Linton: “Antes do século XVI não havia no mundo a consciência de raça, nem
havia incentivo algum para que essa consciência surgisse” e ele acrescenta que,
na antiguidade:
“Os povos clássicos conheciam apenas um grupo de tipo físico acentuadamente
diferente do seu. Eram os negros nilóticos, cujo território ficava a distancia
demasiado grande para que lhes dessem importância, fosse como inimigos, fosse
como fontes de escravos. Portanto, a atitude clássica em relação a esse povo
era neutra. De fato, os poetas gregos mostravam tendências a idealizá-los mais
que aos bárbaros seus vizinhos, aos quais conheciam melhor e comumente se
referiam aos nilóticos com os ‘felizes etíopes’” (Linton, 1962, p. 62-63).
Assim chegamos à conclusão de que a partir do século 16 houve uma mudança
histórica que criou a necessidade do racismo e da ideologia racista[2]. Esta mudança foi a adoção da escravidão negra
no novo mundo. Se a escravidão no mundo antigo não tinha nenhuma conotação
racial, o mesmo não se pode dizer em relação ao “novo mundo”. Podemos dizer
que, no caso especial do Brasil, mas que pode ser generalizado a todos países
escravistas do continente americano, a colonização estava ligada às
necessidades de acumulação primitiva de capital dos países europeus e que foi
graças a ela que se formou um modo de produção escravista colonial-exportador,
o que pressupõe a monocultura, a grande lavoura e o trabalho escravo[3].
A acumulação primitiva de capital produziu o modo de produção escravista
colonial e o tráfico negreiro. A polêmica sobre os motivos da adoção do
trabalho escravo dos negros africanos continua viva, mas podemos concordar com
a tese de que o tipo de produção implantada nos países escravistas exigia uma
grande quantidade de força de trabalho não encontrada nem no local de produção
nem na Europa ocidental e daí a necessidade de buscá-la na África. Segundo E.
Willians:
“Com a população limitada da Europa no século XVI, os trabalhadores livres
necessários para cultivar cana-de-açúcar, tabaco e algodão no novo mundo, não
podiam ser fornecidos em quantidades adequadas para permitir a produção em
grande escala. A escravidão foi necessária por causa disso e para conseguir
escravos os europeus recorreram primeiro aos aborígenes e depois à África”
(Willians, 1975, p. 10).
Portanto, é com o desenvolvimento das sociedades europeias no período de
transição ao capitalismo e a sua expansão comercial e colonial que se cria uma
nova situação histórica que altera o caráter das relações raciais criando e
consolidando o racismo. É a adoção do trabalho escravo dos negros e o tráfico
negreiro que tornam necessária uma ideologia que justifique essa prática social
de discriminação racial. Os dominadores europeus não só sentiam necessidade de
justificar para si mesmos as condições subumanas e a exploração sistemática
efetuada por eles sobre os escravos negros como também procuravam, sem muito
sucesso, inculcar isto nos escravos para facilitar sua dominação.
A ideologia da superioridade racial atravessou duas fases:
“As primeiras tentativas para racionalizar o domínio europeu baseavam-se em
sanções sobrenaturais. Como os europeus eram cristãos e a maioria dos povos
dominados não o era, parecia natural que o Deus todo-poderoso dos cristãos
recompensasse seu próprio povo. Os proprietários de escravos negros podiam
mesmo justificar a prática da escravatura por uma passagem do antigo
testamento, na qual os filhos de Ham eram condenados a ser ‘cortadores de lenha
e tiradores de água’. Essas sanções sobrenaturais, porém, cedo começaram a
perder sua força e os brancos procuraram racionalizações naturalistas. A teoria
da evolução e da sobrevivência dos mais aptos era o instrumento que precisavam”
(Linton, 1962, p. 64).
O darwinismo surge como o mais eficiente fundamento da ideologia racista. O
seu evolucionismo com base na “luta pela vida, “sobrevivência dos mais aptos” e
na “herança dos caracteres adquiridos” servia para justificar a escravidão
negra no Novo Mundo. Geralmente se aceita a diferenciação entre o darwinismo
original – utilizado apenas na esfera da biologia – e o darwinismo social – que
é a aplicação da “teoria” biológica da seleção natural à sociedade. A razão
dessa diferenciação se encontra, segundo seus defensores, no próprio Darwin,
que aplicaria suas teses apenas ao mundo dos seres vivos, “biológico” e não ao
mundo social, humano. Isto, entretanto, não é verdade. Se isto não ficou claro
em A Origem das Espécies, em A Descendência do Homem ficou evidente, pois neste
livro ele aplicava suas teorias às sociedades humanas, inclusive utilizando-se
das teses malthusianas. O próprio Darwin, como ficou demonstrado em seu diário
de bordo publicado sob o título Viagem de um Naturalista ao
Redor do Beagle (Darwin, 1979; Darwin, 1974) Darwin, 1981),
assumia posições claramente racistas[4]. Entretanto, Darwin apenas foi um dos ideólogos
que procuraram, intencionalmente ou não, justificar a nova situação social.
Posteriormente, surgiram muitos outros que, baseando-se nele ou não, buscaram
fundamentar “cientificamente” a ideologia racista, tais como Gobineau, Lapouge,
etc.
Mas se a origem histórica do racismo não é motivo de muita polêmica, o
mesmo não ocorre a respeito do que torna possível a reprodução da ideologia
racista em nossa época. Existem aqueles que dizem que a ideologia racista
sobrevive devido à “herança cultural” enquanto outros sustentam que ela
permanece devido à “dominação branca”. Consideramos que para saber por qual
motivo a ideologia racista se reproduz nas sociedades contemporâneas é
necessário, inicialmente, compreender seu processo de produção e reprodução.
Toda ideologia possui uma base real que ela apresenta de forma invertida (Marx
& Engels, 1991). Portanto, só pode existir uma ideologia racista existindo
uma base real que lhe dê sustentação. A base real da ideologia racista só pode
ser o racismo, tal como o definimos anteriormente. O racismo cria a ideologia
racista e esta o justifica e incentiva sua reprodução.
Entretanto, o racismo da época escravista é diferente do racismo da época
contemporânea. Explicar esta diferença é o primeiro passo para compreender a
permanência da ideologia racista nos dias de hoje. Para compreendermos a situação
do negro nas sociedades capitalistas contemporâneas é preciso ver que em todas
as sociedades escravistas coloniais a abolição da escravidão significou apenas
o fim do cativeiro e do trabalho forçado, ou seja, mudou-se apenas o seu status de escravo para homem livre. Mas qual
passou a ser a situação social desse “homem livre”? Quais são as possibilidades
da população negra de se reproduzir em igualdade de condições com as outras
camadas da população?
Em todas as sociedades em que houve o fim do trabalho escravo (como, por
exemplo, o Brasil e os Estados Unidos) a integração do negro nas sociedades
pós-escravistas se deu da mesma forma: em uma situação subalterna e de
marginalização social. As sociedades escravistas coloniais apresentavam o
escravo negro como sendo a “base” da “pirâmide social” em nível de vida. As
condições precárias de vida dos escravos negros, a principal classe explorada
do modo de produção escravista colonial, quase não eram compartilhadas por
outras camadas sociais. As sociedades pós-escravistas alteram a forma da divisão de classes mas a conserva[5], ou seja, surgem novas relações de classes mas
continua existindo classes sociais e aqueles que pertenciam às classes
exploradas no modo de produção anterior tendem a pertencer às classes
exploradas do novo modo de produção.
A divisão da sociedade em classes no escravismo colonial era, ao mesmo
tempo, uma divisão racial, já que os escravos eram negros e o senhores de
escravos eram brancos. Nas sociedades pós-escravistas, os negros deixam de
pertencer a uma única classe e se dividem entre as diversas classes que compõem
a sociedade capitalista. Entretanto, a maioria esmagadora dos negros passam a
compor as classes exploradas da sociedade capitalista, tais como o
proletariado, o campesinato, o lumpemproletariado, etc., que também possuem
condições precárias de vida e, assim sendo, os negros continuam, em matéria de
nível de vida, formando, juntamente com os componentes brancos das classes
exploradas, a “base da pirâmide social”.
Por conseguinte, as condições de vida da população negra criavam a
possibilidade de interpretar tal situação como “natural”, ou seja, como produto
não de uma determinada situação social mas sim de uma condição natural: a raça.
John Lewis nos chamou a atenção sobre esse mesmo assunto:
“É preciso também que se compreenda que quando as pessoas são destituídas
de seus direitos, consideradas inferiores, forçadas a viver em más condições e
tratadas como animais, elas desenvolverão muitas qualidades más. Então, aqueles
que as exploram apontarão as consequências do tratamento que lhes dão como
razão para mantê-las numa posição de degradação e inferioridade. Privamos as pessoas
de instrução e depois queixamo-nos de que são analfabetas. Fazemos delas o que
são, depois indagamos como se pode esperar que as recebamos em nossas casa em
igualdade de condições” (Lewis, 1969, p. 116).
O modo de produção capitalista condiciona o conjunto das relações sociais e
instaura uma verdadeira sociabilidade capitalista. Esta tem como uma de suas
principais características a competição social, expressa na busca de status, ascensão social, etc. Isto tudo produz uma
forma também específica de mentalidade: a mentalidade burguesa. Esta reproduz,
no plano das ideias, a sociabilidade capitalista[6]. Este fato acaba provocando uma rivalidade interna
nas classes exploradas.
Segundo Baran e Sweezy:
“O resultado claro disso tudo é que cada grupo de status tem a necessidade
psicológica enraizada de compensar os sentimentos de inferioridade e inveja
para com aqueles que estão acima, na escala social, pelos sentimentos de
superioridade e desprezo em relação aqueles que se acham abaixo. Sucede, pois,
que um grupo especial de párias no fundo da estratificação social, funciona
como uma espécie de para-raios para as frustrações e hostilidade de todos os
grupos em posição mais elevada. Pode-se dizer que a própria existência do grupo
de párias é uma espécie de harmonizador e estabilizador da estrutura social –
tanto mais que estes apenas desempenham seu papel passiva e resignadamente. Tal
sociedade torna-se com o tempo tão completamente saturada com o preconceito
racial que este mergulha no nível do subconsciente, convertendo-se numa parte
da ‘natureza humana’ de seus membros” (Baran & Sweezy, 1978, p. 264-265).
As sociedades capitalistas contemporâneas são formadas por classes sociais
antagônicas e vivem em uma permanente guerra civil oculta. Por conseguinte, é
necessário reconhecer que a ideologia racista também se fundamenta nas
contradições do capitalismo, ou seja, na luta de classes. A estratégia do
“dividir para conquistar” é adotada eficazmente pela classe dominante desde que
Maquiavel escreveu O Príncipe. Isto
assume um caráter mais visível no capitalismo contemporâneo que se caracteriza
pelo incentivo à competição em todas as esferas da vida social. Vejamos um
exemplo. Os trabalhadores são obrigados, devido a existência do exército
industrial de reserva, a competir pelo emprego. Isto cria conflitos internos na
classe trabalhadora e a preferência dos empregadores pelo trabalhador branco
provoca conflitos raciais que ofuscam as verdadeiras determinações do desemprego
e dos baixos salários – que é a dinâmica do modo de produção capitalista – e
assim amortece a luta de classes.
A sociedade capitalista vive constantes crises cíclicas. Nós sabemos que
toda crise apresenta a necessidade de sua solução. A classe revolucionária e a
classe dominante precisam fundamentar teórica ou ideologicamente a ação
política necessária para se concretizar a “solução” proposta. A solução da
classe revolucionária é a revolução social e a da classe dominante é a
contrarrevolução. Ambas passam a combater um inimigo. A diferença está em que o
inimigo apontado pela classe revolucionária é real e o apontado pela classe
dominante é imaginário. Toda crise traz insegurança e por isso as classes
exploradas buscam descobrir os “responsáveis” ou as determinações que a
provoca. A classe dominante busca ocultar o seu papel no processo – que é o de
conservar as relações sociais em crise e que geram a crise – e inventa o
inimigo imaginário, que é responsabilizado pela crise. Assim, o inimigo real inventa
um inimigo imaginário[7].
A invenção de um inimigo imaginário é uma forma de deslocar o conflito de
classe para um conflito nacional, racial, religioso, etc. O inimigo real (a
classe dominante) cria sua ausência e, ao mesmo tempo, a presença de um inimigo
imaginário (por exemplo: os judeus na Alemanha nazista, as “bruxas” na
inquisição, os comunistas no golpe de estado de 64 no Brasil, os “agentes do
imperialismo”, “contrarrevolucionários” ou “inimigos do povo” no capitalismo de
estado da URSS, Leste Europeu, China, etc.). A invenção de um inimigo
imaginário estrangeiro tem como objetivo criar ou fortalecer a identidade
nacional, mas somente porque ela está dilacerada internamente pelos seus
conflitos de classes, ou seja, busca-se transformar a contradição interna em
externa e com isso “aboli-la” (tal como no caso argentino da guerra das
Malvinas).
A concentração do mal em um inimigo imaginário reconstrói a identidade
coletiva perdida. Assim, um partido burguês pode apresentar como “inimigo do
povo” o atual governo no burguês e com isso ofuscar a visão do verdadeiro
inimigo e aparecer como a alternativa que restauraria o equilíbrio social.
Contudo, não devemos pensar que a classe dominante faça isso de forma planejada
e consciente, embora muitas vezes isto ocorra, tal como no exemplo de Hitler.
Uma afirmação dele deixa isto claro:
“Em geral, a arte de todos os verdadeiros chefes do povo de todos os tempos
consiste em concentrar a atenção do povo em um único adversário, em não deixar
dispersar-se… A arte de sugerir ao povo que os inimigos mais diferentes
pertençam à mesma categoria é de um grande chefe… É preciso sempre colocar na
mesma pilha uma pluralidade de adversários os mais variados” (apud. Agacinski,
1991, p. 136-137).
A partir do momento que a ideologia burguesa triunfa e as classes
exploradas aceitam a luta contra o inimigo imaginário personificado e este é
destruído, vê-se que isto não significava a destruição da verdadeira fonte da
contradição e da crise. Daí surge a necessidade de criar novos “inimigos
imaginários” para serem objeto de ataque quando as contradições se acirrarem
novamente. É isto que possibilita a produção de “inimigos imaginários
potenciais”. Quando se toma necessário para a reprodução capitalista, ou seja,
quando a crise se instala, busca-se sua destruição para evitar o acirramento da
luta de classes e possibilidade de revolução social.
Da perspectiva da classe revolucionária é um equívoco buscar a destruição
de um inimigo (real ou imaginário) personificado em indivíduos reais
(burgueses, negros, brancos, judeus, católicos, liberais, fascistas, etc.) ou
em um indivíduo particular (o presidente da república, o líder do partido fascista,
o chefe da igreja conservadora, etc.), pois isto significa destruir a imagem e
não as relações sociais que engendram as classes sociais antagônicas, a
exploração, a alienação, etc., e, portanto, o inimigo real que busca conservar
estas relações[8]. A destruição de pessoas que sustentam
determinadas relações sociais não significa a destruição destas, pois elas
poderão se reproduzir e, assim, produzir novas pessoas para sustentá-las. Além
disso, isto apenas reforçaria a ideologia dominante, porque o inimigo real é
uma classe social que deve sua existência à determinadas relações de produção e
a abolição destas (e, consequentemente, da classe dominante) não pode ser
realizada com o extermínio de indivíduos reais.
Os “inimigos imaginários potenciais” são aqueles grupos diferenciados já
existentes na sociedade. Estes podem ser os negros, os estrangeiros, os judeus,
os comunistas, etc. Portanto, a luta de classes no capitalismo engendra,
através da ação da burguesia, a reprodução do racismo por quatro motivos
fundamentais; a) a classe dominante busca, em sua luta contra o proletariado,
dividir a classe trabalhadora jogando uma parte dela contra a outra,
utilizando-se de suas diferenciações e, entre estas, a diferenciação racial; b)
para ofuscar a visão dos conflitos de classes ela busca desviar a atenção para
outros tipos de conflitos, tal como o conflito racial; c) para evitar sua
identificação com as relações sociais opressoras e em crise, ela busca
responsabilizar certas camadas sociais por esta situação, sendo a população
negra uma dessas camadas; d) quando as contradições se acirram e ameaçam
transformar a guerra civil oculta em guerra civil aberta torna-se necessário,
para a classe dominante, concentrar “o mal” em uma camada social específica e a
população negra (assim, como os judeus. os “comunistas”, os homossexuais, etc.)
é uma reserva potencial que pode ser utilizada. Além disso, o racismo pode ser
reforçado por motivos conjunturais:
“Em 1935, a maior parte dos americanos caracterizava os japoneses como
‘progressistas’, ‘inteligentes’, e ‘industriosos’. Sete anos mais tarde, esses
adjetivos cederam lugar a ‘astutos’ e ‘traiçoeiros’. Quando se precisava de
trabalhadores chineses na Califórnia, eles eram ‘frugais’, ‘sóbrios’ e
‘respeitadores da lei’, ao passo que, quando se defendia a lei da exclusão,
passaram a ser ‘imundos’, ‘repugnantes’, ‘inassimiláveis’, ‘dominados pelo
espírito de clã’ e ‘perigosos’ ” (Kluckhon, 1972, p. 132.).
Assim, dependendo da conjuntura, se reforça ou enfraquece os preconceitos e
o racismo. A necessidade de força de trabalho pode beneficiar, momentaneamente,
imigrantes, estrangeiros, etc., e o seu excesso pode provocar o efeito
contrário.
Portanto, estas são as determinações do racismo e da ideologia racista. Mas
elas são reforçadas pela “herança cultural” dos tempos da escravidão. Acontece
que a tese de que a ideologia racista se reproduz exclusivamente devido à
“herança cultural” é simplesmente ideológica. A herança cultural só se sustenta
devido às condições reais de vida da população negra e aos conflitos sociais
acima citados, pois assim são produzidas “comprovações empíricas” que lhe
fornece uma certa credibilidade na esfera das representações cotidianas. Caso
contrário, a luta secular dos negros seria suficiente para aboli-la. A herança
cultural, na falta de uma “base real” que lhe dê sustentação, desapareceria com
o passar do tempo. A tese da “dominação branca”, por sua vez, é apenas uma
ideologia racista invertida. Desconhecer as condições históricas concretas que
produziram o racismo e possibilitam sua reprodução apresentando-o como
resultado da “dominação branca” é dar nova fundamentação ideológica ao racismo.
Nesse caso, passa-se a colocar a questão apenas em termos de luta de raças. Tal
tese apresenta as seguintes dificuldades: a) o que explica, se o problema é
unicamente racial, a dominação branca sobre os negros a não ser sua
“superioridade racial”? b) a luta dos negros passa a ser exclusivamente contra
os brancos e a solução só seria possível com o aniquilamento dos últimos ou
então com a substituição da “dominação branca” pela “dominação negra”, o que
significa apenas a mudança da “raça dominante” e não a abolição do racismo; c)
ao se colocar os brancos como o inimigo a ser combatido, troca-se inimigo real
– a classe dominante que busca conservar as relações de produção capitalistas e
as condições de produção e reprodução do racismo – por um inimigo imaginário,
caindo numa eterna luta inútil, pois não vai à “raiz” do problema e por isso
ele continua sem solução; e d) reforça-se, assim, a ideologia racista, já que
os brancos se sentirão ofendidos por serem tomados como “inimigos” e isto pode
gerar antipatias e, consequentemente, perdas de aliados potenciais. Com isso se
presta um bom serviço à estratégia burguesa do “dividir para conquistar”.
É claro que o racismo do oprimido tem fundamentos diferentes do racismo do
opressor. O racismo do oprimido é uma resposta equivocada que alguns negros dão
à sua situação de opressão e à necessidade de superá-la. É uma posição política
equivocada e que não leva à nenhum resultado positivo, embora seja desculpável
para aqueles que compreendem o fenômeno. Acontece que são poucos os que
compreendem este fenômeno e sua existência é um retrocesso para o movimento de
libertação dos negros.
A base real da ideologia racista, como já dissemos, é o racismo praticado
nas sociedades capitalistas contemporâneas. A afirmação de um antropólogo sobre
esta questão é extremamente correta: “a discriminação ‘racial’ é, sem nenhuma
dúvida, apenas parte do problema mais geral da discriminação social”
(Kluckhon, 1972, p. 134). A condição social serve de “naturalização” da
“inferioridade” racial. Assim a “inferioridade” social possibilita, juntamente
com outros fatores, a ideologia da inferioridade racial.
Na ideologia, esta relação aparece invertida: é a “inferioridade” racial
que causa a “inferioridade” social. No entanto, não podemos a partir disto
chegar à conclusão simplista de que não existe “discriminação racial”, pois a
discriminação social se utiliza das diferenças físicas para se realizar de
forma específica e direcionada a uma parte da população: a negra.
A superação do racismo só pode ser realizada com a concomitante superação
do modo de produção capitalista e a implantação do modo de uma sociedade
autogerida. Portanto, o movimento negro deve articular sua luta específica –
antirracista – com a luta geral das classes exploradas – anticapitalista.
Existe uma unidade entre a luta antirracista e a luta anticapitalista. Esta
unidade se encontra no fato de ser impossível superar o racismo sem a superação
do capitalismo.
Entretanto, a abolição do capitalismo não gera, automaticamente, a abolição
do racismo. A superação do racismo só ocorrerá num quadro de transformações
sociais que rompam com as relações raciais desiguais produzidas pelo modo de
produção capitalista. Acontece que a superação do capitalismo ocorre num
processo complexo e contraditório que não elimina imediata e automaticamente as
formas capitalistas de regularização das relações sociais, tal como a ideologia
racista. E esta, uma vez existindo e se reproduzindo durante o período
revolucionário, poderá incentivar a permanência de relações raciais desiguais
e, assim, ameaçar a própria construção de uma sociedade autogerida, devido aos
conflitos sociais provocados por esta situação. Por isso, torna-se necessário
articular a estratégia específica do movimento negro com a estratégia global do
movimento operário.
A estratégia específica do movimento negro é aquela que marca a luta desse
movimento contra o racismo. Isto inclui desde lutas imediatas como a denúncia
do racismo, a luta por uma legislação antirracista, a crítica das ideologias
racistas, a busca de mudanças nas relações raciais nos movimentos sociais,
etc., até a outras mais a longo prazo tal como a constituição de relações
raciais igualitárias no conjunto da sociedade, e a instauração da autogestão
social, sua condição de possibilidade. É principalmente, mas não unicamente, uma
luta cultural que se inicia na atual sociedade e só termina com o fim completo
do racismo na sociedade autogerida já constituída.
Para que a construção de uma nova sociedade, baseada em relações raciais
igualitárias, se concretize, é necessário romper com a reprodução do racismo no
movimento operário e demais movimentos sociais. Sabemos que mesmo os militantes
de organizações “ditas” revolucionárias e dos mais variados movimentos sociais
(estudantil, urbanos, etc.) introjetam a mentalidade burguesa e aspectos da
ideologia dominante e as reproduzem em sua prática social. Entre estes aspectos
da ideologia burguesa que tais militantes reproduzem estão o racismo [contra
negros e contra brancos], o sexismo, etc. Isto se toma possível por causa da
pressão das “ideias dominantes” e da sociabilidade capitalista. O movimento
negro deve, então, buscar a realização de uma revolução cultural antirracista
desde já, no interior dos movimentos sociais, e deve permanecer realizando este
trabalho cultural até mesmo no período de consolidação da sociedade autogerida
para combater a “herança cultural” e, assim, evitar retrocesso, já que outros
obstáculos estarão atuando simultaneamente e em conjunto podem dificultar a
emancipação humana.
Podemos dizer, para concluir, que a razão de ser do movimento negro é a luta
contra o racismo [seja em relação a negros ou brancos] e, consequentemente,
contra o capitalismo. Ele não deve se “anular” diante do movimento operário,
mas sim se articular com ele buscando a constituição de uma sociedade sem
classes e com relações raciais igualitárias.
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[1] Faz-se necessário ressaltar que
focalizaremos, neste texto, o conflito racial entre negros e brancos, embora
haja elementos teóricos e referências generalizáveis a todos os conflitos
raciais.
[2] Segundo
Sérgio Buarque de Holanda, os escravos negros em Portugal eram vítimas do
racismo, mas este era muito mais brando do que o que surgiu posteriormente e
persiste até hoje. Além disso, ele não era acompanhado por uma ideologia que o
justificasse (cf. Holanda, 1990).
[3] Cf.
Prado Júnior (1989); Furtado (1979).
[4] Para
uma crítica ao darwinismo, cf.: Viana (2001); Marco (1987); Hirst (1977); Lewis
(1969); Banton (1976); Viana (2003).
[5] Para o
caso do Brasil, cf. Camilo Torres (1965); para o caso dos EUA,
cf. Baran & Sweezy (1978).
[6] Sobre
mentalidade burguesa e sociabilidade capitalista, cf. Viana (2002).
[7] Alguns
apontamentos interessantes sobre a criação do inimigo imaginário, apesar das
deficiências da análise que “desconhece” a luta de classes como determinação
fundamental do fenômeno, são apresentadas por: Agacinski (1991).
[8] “A
revolução proletária não precisa do terror para realizar seus fins, ela odeia e
abomina o assassinato. Ela não precisa desses meios de luta porque não combate
indivíduos, mas instituições, porque não entra na arena cheia de ilusões
ingênuas que, perdidas, levariam a uma vingança sangrenta” (Luxemburgo, 1991,
p. 103).
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Publicado em: SANTOS, Cleito Pereira dos e VIANA,
Nildo (orgs.). Capitalismo e Questão Racial. Rio de
Janeiro: Corifeu, 2009.
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