As lições do caso Boaventura de Sousa Santos

 


Por Ivonaldo Leite (Universidade Federal da Paraíba)

Às vésperas do Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais e do Congresso da Associação Internacional de Ciências Sociais e Humanas de Língua Portuguesa, todos nós, partícipes em maior ou menor medida dessas instâncias de construção científica de análise social do mundo que fala português (nos últimos trinta anos), fomos surpreendidos pelo conjunto de denúncias envolvendo  Boaventura de Sousa Santos. 

Trata-se de um facto impactante por diversas razões. Seja pela significativa contribuição de Boaventua na referida construção; seja pela dimensão da sua obra, que o projetou internacionalmente como distinguido cientista social do mundo de expressão lusófona; seja pelo caráter das denúncias de que é objeto: assédio sexual no contexto do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

Diante de casos como o aqui em foco, costumam ser habituais dois posicionamentos: declaração de apoio incondicional ao acusado ou, sobretudo com a atual “cultura de cancelamento, a tentativa de seu  “apedrejamento público”, destruindo a sua reputação e desacreditando tudo no qual ele tenha posto as mãos. Essa é uma polaridade que, infelizmente, já se verifica no caso Boaventura Santos. Infelizmente, porque ela em nada contribuirá para o devido esclarecimento da situação, trazendo a lume o que efetivamente aconteceu. Até por isso convém fazer o ponto da situação, e ele é o seguinte:

i) Em fins de março, foi publicado o livro Sexual Misconduct in Academia: Informing an Ethics of Care in University, pela prestigiosa editora britânica Routledge. Nele, há um capítulo de autoria de Lieselotte Viaene (belga), Catarina Laranjeiro (portuguesa) e Myie Nadya Tom (estadunidense) onde elas narram episódios de assédio sexual no âmbito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, que teriam sido praticados por Boaventura. Embora não o identifiquem diretamente, pelas menções feitas, ele próprio admitiu que se tratava dele.  As autoras são egressas do Centro de Estudos Sociais, oriundas de doutoramentos e pós-doutoramento - Lieselotte Viaene, sob a orientação de Boaventura.

ii) São mencionados factos diversos, como: a) não realização do processo de orientação, com as reuniões de trabalho próprias entre orientador e orientando/a; b) ao invés disso, ocorriam frequentes “confraternizações”, fora do espaço universitário, com longas festas regadas a muito álcool onde eram misturadas licenciosamente tratativas acadêmicas e pessoais; c) nesse ambiente festivo (mas não só nele), ocorriam os casos de assédio sexual (escrevem as autoras: nessas “confraternizações”, eram encorajadas  “relações pessoais mais íntimas entre investigadores de diferentes posições hierárquicas”).

iii) Diante da gravidade da situação, Boaventura se manifestou emitindo uma nota onde nega tais factos e atribui as denúncias a um ato de vingança, referindo nomeadamente, nesse sentido, a belga Lieselotte Viaene, que, num episódio mediado por ele, foi expulsa do Centro de Estudos Sociais/Universidade de Coimbra por, em suas palavras, “comportamento incorreto e indisciplinado”. Admite, porém, as suas faltas para com o processo de orientação (alega “agenda cheia”) e a realização das ditas “confraternizações”.

Longe de mim quaisquer resquícios de moralismo. Se duas pessoas adultas, por livre e espontânea vontade, resolvem viver qualquer modalidade de amor, seja de que modo for, trata-se de algo que diz respeito apenas a elas. Mas o caso em tela evidentemente não é esse. A sua dimensão e o seu grau de veracidade só poderão ser apontados pela devida apuração, como tem defendido o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (“apuração doa em quem doer”). Por agora, e como o próprio Boaventura admite, parece poder ser dito que ele incorreu no equívoco de ser negligente com o processo de orientação. Terreno da licenciosidade comum a outro grave erro: considerar como único critério para o percurso de pós-graduandos a sua vinculação a “discursos críticos” ou a “movimentos sociais”, desprezando os critérios próprios que norteiam o trabalho científico. Para isso, não há outro nome que não populismo, essa praga que tanto prejuízo tem acarretado às boas causas, ao ideário progressista e ao bom combate. De resto, ficamos por saber quais foram as razões da expulsão da pós-doutoranda Lieselotte Viaene e em que consistiu o seu comportamento “incorreto e indisciplinado”. Imersa na licenciosidade, ela negou-se a seguir os critérios próprios do trabalho científico? Mas se a licenciosidade foi permitida...

Por outra parte, penso que é ultrajante aproveitar o momento para desqualificar toda a vasta obra de Boaventura, que vai da sociologia do direito aos temas específicos das diversas ciências humanas. E, ademais, fazer isso até mesmo antes das devidas apurações. Por certo, há aspectos de seu trabalho que merecem questionamentos acurados, dada a sua insustentabilidade do ponto de vista empírico-analítico. Questionamentos que, aliás, já têm sido feitos por outros cientistas sociais, mas, perante os quais, ele assobia para o lado e os ignora solenemente. Porém, é preciso saber separar as coisas e agir conforme o rito probatório das evidências. Sem claudicar e sem nada ocultar.

Por fim, uma última lição desse triste episódio -  do ponto de vista epistemológico mais geral - incide sobre as dinâmicas do dito campo científico, conforme o conceituou o sociólogo Pierre Bourdieu. O culto à personalidade (tão próprio do estalinismo...) tende a fazer com que até os discursos críticos se transformem em mercadoria para alimentar a lógica dos mercados cognitivos, gerando uma ordem que se estabelece naturalizando as suas anomalias, apresentando-se como “consensual” e, assim, ocultando o enviesamento sobre o qual ela se ergue. Portanto, parece necessário interrogar-se sobre a ausência de interrogação.

 

 

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