Trotsky, o crepúsculo da última ausência: Esteban Volkov, presente!

 

Esteban: criança, ao lado de Trotsky, e adulto

Por Ivonaldo Leite

 “Os mortos só morrem se perecerem em nossos corações. Mas enquanto continuarmos a amá-los e a respeitar sua memória, enquanto continuarmos a colocar seus pratos favoritos em seus túmulos e nos retirarmos periodicamente para homenageá-los, enquanto fizermos tudo isso, eles continuarão vivos. Eles estarão por aí, ao nosso redor, em todos os lugares, sedentos de lembranças e afeto. Apenas algumas palavras serão suficientes para invocar sua presença e sentir o abraço urgente de seus corpos invisíveis, sempre impacientes para nos serem úteis.”

Lembrei-me destas palavras da escritora guadalupense e feminista Maryse Condé por estes dias.  Mais precisamente em decorrência da morte no último dia 16/06, aos 96 anos, no México, de Esteban Volkov (Sieva), neto de Leon Trotsky. É quase desnecessário dizer que Trotsky já foi considerado ‘o homem mais perseguido do mundo’.  Perseguido pela cólera stalinista que se apossou dos rumos da Revolução Russa de 1917, Revolução esta que ele, Trotsky, contribuiu significativamente para que triunfasse. Numa epopeia trágica, mas também de muita altivez, Trotsky percorreu várias partes do mundo protegendo-se da brutal perseguição de Stálin. Até ser morto a golpes de picareta por um agente stalinista, em 1940, no México.

A história de Esteban Volkov está estreitamente ligada à saga do avô. Viveu uma infância imersa em tragédias. Seu pai, Palton Volkov, opositor de Stálin, foi preso e executado; Zinaida, sua mãe, filha do primeiro casamento de Trotsky, tirou a própria vida como consequência das perseguições stalinistas à sua família. Sua avó Aleksandra, líder oposicionista em Leningrado, foi presa no campo de trabalhos forçados de Kolyma, tendo “desaparecido” em 1937, assim como a irmã de Esteban, Alexandra Volkov. Seu tio, Leon Sedov, com quem Esteban foi viver em França, depois de ficar órfão, também foi assassinado pelos stalinistas. Assim, ele teve que cruzar o Atlântico para viver com o seu avô, perseguido e exilado no México. Com apenas 13 anos de idade, foi testemunha de dois atentados contra a vida de Trotsky. No primeiro, o próprio Esteban saiu ferido após a casa ser metralhada. No segundo, em 20 de agosto de 1940, um agente a mando de Stalin (Ramón Mercader) assassinou o ‘teórico internacionalista’ e um dos principiais líderes da Revolução de Outubro de 1917.   

Apesar de tudo isso, quando era dito a Esteban que a sua vida era marcada por tragédias, a sua reação era afirmar que muita gente teve uma vida mais sofrida do que a dele. E como que, numa demonstração de resignação e agradecimento pelos dias de existência, afirmava que era o membro da família que viveu mais tempo.

Dedicou-se intensamente à preservação da memória e do legado do avô, sendo inclusive um protagonista central na transformação da casa em que Trotsky morou - e foi assassinado - em museu. Não obstante a via crucis que ele e a sua família viveram, demostrava bom humor com frequência. Mas, por trás dos olhos cansados com o peso da idade, embora sorridentes, parecia haver, como conjecturou Alan Woods, uma profunda sensação de melancolia, sofrimento e tristeza, embora Esteban nunca pretendesse demonstrar isso. Também foi essa a minha impressão quando, em 2011, participei de um dos vários debates por ele levados a cabo no Brasil (em Recife, São Paulo, Joinville, etc.). Não falo da tristeza e da melancolia que nos chegam pelas vias da grande insônia do mundo (das incompreensões diversas, dos amores mal resolvidos, do afastamento entre amigos, da solidão...). Nesse caso, poderá até haver algum valor ontológico com significado para o percurso de vida. Falo de outro tipo de tristeza e de melancolia, aquele que impõe à outra pessoa o destrato, a infâmia e a dor, assim como a ‘pulsão de morte’ (lembremos de Sabina Spielrein e Freud).

Trotsky ao lado do pintor Diego Rivera (E) e do
 poeta surrealista André Breton(D)


Em relação ao modo de olhar horizontes utópicos, para todos aqueles que, a dada altura da vida, em maior ou menor medida, estiveram (e continuam a estar) sob a inspiração do legado trotskista (que não se confunde com determinadas versões do trotskismo), a morte de Esteban representa a perda do último fio físico com Leon Trotsky. Seja como for, o que esse legado tem a nos dizer é que a utopia, como enfatizava o próprio Trotsky, precisa ser concebida com estudo disciplinado e sistemático, não podendo ser entendida de forma estanque e de modo a-histórico (parado no tempo).  Daí que, por exemplo, faça mais sentido falar em processos emancipatórios, o que implica a ideia permanente de movimento (‘a revolução permanente’), do que em emancipação, expressão indicativa de um estado a ser alcançado tal qual uma casa na qual se chega, entra-se e se acomoda. Tendo-se chegado ao “paraíso”. A história, contudo, com os seus problemas e desafios, é movimento, e ‘o tempo não para’.

Apesar das adversidades, Esteban – assim como Trotsky – se fez altivo. Penso que, a esse respeito, não há como deixar de recordar o que o líder vietnamita Ho-Chi-Min dizia sobre a superioridade moral - em plena guerra dos Estados Unidos contra Vietnam (1955-1975). Ho afirmava que, considerando a situação de desvantagem que aqueles que combatem pela justiça se encontram,  era da maior importância que ficasse clara a sua superioridade moral sobre os seus adversários. E dava um exemplo ilustrativo prático: na Guerra do Vietnam, o país estava sendo atacado por bombardeios diários da aviação norte-americana. Algumas vezes, as aeronaves eram atingidas pela defesa antiaérea vietnamita e saíam soltando fumaça, mas não chegavam a cair, e retornavam às bases. Entre os vietnamitas, havia uma tendência a contabilizar esses aviões como abatidos. Ho, então, ordenou que fossem contabilizados apenas os aviões efetivamente derrubados. Explicava que, por não terem os meios poderosos de divulgação dos Estados Unidos, era fundamental que os combatentes vietnamitas cultivassem rigorosamente a imagem da verdade. Dessa forma, quando afirmassem algo, todos saberiam que era de fato expressão da realidade. Foi assim que conquistaram um imenso apoio internacional (inclusive em território estadunidense), o que tornou a guerra insustentável e uma derrota para a potência norte-americana. A superioridade moral dos vietnamitas foi decisiva.

No caso do legado de Trotsky, a superioridade moral, comparativamente ao stalinismo, foi um dos fatores que fez com que o seu pensamento não desaparecesse, e se mantivesse ampliando-se a outras perspectivas, conforme está refletido no Manifesto por uma Arte Independente, de sua autoria em parceria com o poeta surrealista francês André Breton. É um legado que se reflete, ademais, na senda da IV Internacional, nas inestimáveis contribuições de Ernst Mandel, na contemporânea deriva ecossocialista e na recente interlocução com o ideário libertário.

Esteban: últimos tempos 


Esteban Volkov, ou simplesmente Sieva, não somente honrou a memória do seu avô como, ao zelar - com espírito aberto - pelo legado de Trotsky, deixou pavimentado o caminho para o que perspectivas inspiradas na obra do revolucionário internacionalista podem oferecer como instrumento de análise e de intervenção atualmente e nos tempos que estão por chegar. Por fim, vem-me à mente um poema do grego Calímaco, um epitáfio a Heráclito: 

Heráclito! Contou-me alguém teu fado e trouxe-me
Às lágrimas. Lembrei de quantos sóis
Pusemos conversando; mas agora tu,
Amigo halicarnássio, és cinza há muito.
Porém, teus rouxinóis ainda vivem, e Hades,
Que tudo apressa, não lhes lança a mão.

Sim, mesmo Hades, deus da esfera da morte na mitologia grega, não pode impedir a continuidade de um legado. Ademais, como realcei no início deste breve texto, em companhia de Maryse Condé, os mortos só morrem quando perecem em nossos corações.

 

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