Ritmos entre Lisboa, Rio de Janeiro e Paris: Sobre Ritmanálise e Educação Popular

Na praia do oriente
sou areia náufraga
de nenhum mundo

Por ora
sou a pegada
do passo por acontecer...

(Mia Couto – Moçambique: Poema Mestiço)

 

Por Ivonaldo Leite

1. Introdução

Dadas as circunstâncias postas nesta exposição, como o limite de tempo estabelecido e a apresentação de um texto que é apenas um resumo estendido, não tenho maiores pretensões aqui. Pretendo apenas situar a discussão a respeito da Ritmanálise e a relação pretendida dela com a Educação Popular. Desenvolverei um movimento analítico com três dimensões, quais sejam: 1) focando, en passant, as origens da Ritmanálise; 2) tratando da abordagem sistemática que Henri Lefebvre lhe atribuiu; 3) evidenciando a busca de relação entre a Ritmanálise e a Educação Popular.

2. O luso-brasileiro Lúcio Alberto Pinheiro dos Santos: precursor da Ritmanálise

Um “desconhecido” (ou esquecido/ignorado) filósofo português, que viveu no Brasil, de nome Lúcio Alberto Pinheiro dos Santos (1889-1950), tem, no dizer de Geraldo Dias, despertado um renovado interesse internacional na historiografia filosófica das últimas décadas[1]. Esse pensador tem sido referido com epítetos um tanto pitorescos, como “filósofo luso-brasileiro fantasma” ou simplesmente “filósofo fantasma”. A razão disso decorre do facto de ele não ter deixado rastros de quem foi e ser, em geral, identificado como autor de uma obra desaparecida, denominada Ritmanálise[2]. Desta, teria restado apenas algumas partes que ele enviou ao francês Gaston Bachelard (eram interlocutores), e que foram transcritas por Gaston Bachelard no seu livro La dialectique de la durée[3] (A dialética da duração). Lúcio Alberto Pinheiros dos Santos foi professor da Universidade do Porto, e no Brasil chegou a presidir a Sociedade de Estudos de Filosofia e Psicologia, no Rio de Janeiro.

De facto, o conceito original de Ritmanálise foi formulado por Pinheiro dos Santos, e diz respeito à ideia-crença segundo a qual o Ser é, na sua mais íntima substância, figura e número, harmonia e ritmo. Tanto na constituição das energias físicas, como no processo vital e no fluir do espírito, a chave da explicação de tudo quanto existe e transita não seria outra senão a lei do ritmo[4]. Bachelard examina o pensamento de Pinheiro dos Santos, sendo influenciado por ele, e  assinala que a sua abordagem sobre os ritmos é constituída por três perspectivas: material, biológica e psicológica.

Pode-se realçar que a Ritmanálise é uma análise de fenômenos rítmicos às escalas da matéria, da vida e do espírito. A vida, na sua “ascensão espiralada” de ritmos sobrepostos,  dialetiza-se entre a matéria e a memória, até à complexidade da atividade espiritual. A Ritmanálise atua sobre a dualidade do psiquismo e a tendência deste para os polos opostos, procurando o equilíbrio dinâmico mais conscientemente do que a psicanálise[5]. Lúcio Pinheiro dos Santos formulou um princípio da física ritmanalítica segundo o qual a matéria e a radiação não existem senão no ritmo e pelo ritmo. A energia vibratória, em algumas frequências, é a própria energia da existência.

3 – Henri Lefebvre: aprofundamento das abordagens sobre a Ritmanálise

Foi através da produção da Bachelard que Henri Lefebvre (1901-1991) tomou conhecimento da Ritmanálise, designadamente através das obras Dialética da Duração e A Poética do Espaço. Teórico responsável por uma vasta obra e tendo o seu pensamento enraizado no escopo do legado marxiano, Lefebvre dedicou-se ao aprofundamento e à sistematização da abordagem propugnada pela Ritmanálise, resultando daí a obra Éléments de Rythmanalyse (publicado postumamente, em 1992).

Em linhas gerais, Lefebvre realça o uso dos ritmos como ferramenta à observação, a fim de examinar uma variedade de tópicos. Visualiza-se, dessa forma, a Ritmanálise como instrumento metodológico. Dizia ele que, assim como a geometria analítica não é suficiente para a compreensão do espaço, o relógio é incapaz de, por si apenas, determinar o tempo. Disso segue que outros aspectos devem ser considerados, como as questões relacionadas à mudança e repetição, identidade e diferença, contraste e mudança.

Dado o seu estatuto, mais do que uma forma de abordagem e um instrumento metodológico, Lefebvre pretendeu que a Ritmanálise se tornasse uma ciência, tendo como foco o estudo da vida cotidiana urbana no espaço e no tempo. Segundo a sua concepção, as três características fundamentais dos ritmos cotidianos são a repetição, a medida e o movimento. Nesse sentido, a repetição é um atributo essencial do ritmo, e indissociável do movimento, que pressupõe uma medida. Usando a dialética como método[6], ele considera uma infinidade de possibilidades. Recusa o determinismo, o que permite o sujeito histórico se sentir ator da transformação. Ao mesmo tempo, evidencia  o pensamento como um meio de incentivar essa transformação do real, desmitificando a dominação de uma lógica que valoriza unicamente o valor de troca e tende à alienação completa dos indivíduo.

O ritmo funde o tempo natural e o tempo social, relacionando-se com o político e o cultural, e então, por decorrência, vincula-se à divisão social do trabalho. Penso que o conceito de divisão social do trabalho é um dado adquirido, portanto, dispenso-me de tratar das minúcias da sua significação. Parece-me suficiente apenas assinalar que, tendo como referência o legado marxiano e lançando mão do método dialético, Lefebvre tem como fundamental que, referindo-se à separação das tarefas e das funções econômicas entre indivíduos numa sociedade, a divisão do trabalho produz uma hierarquia social na qual as classes dominantes subjugam as classes populares e outras fracções de classe, ademais, “perambulando” nessa hierarquia os ditos lúmpens. Trata-se, por óbvio, de uma concepção de divisão de trabalho diferente daquela sustentada por Émile Durkheim - como recurso para evitar a anomia, sendo portadora então de “solidariedade”.

O filme Tempos Modernos, retratando o início do capitalismo industrial inglês, bem mostra como a divisão do tempo social está vinculada à divisão do trabalho, assim como evidencia os diferentes ritmos de uma sociedade onde o tempo tornou-se um fator indissociavelmente acoplado à produção e à reprodução do capital. Um período em que o ócio, até então valorizado, passou ser negado (a palavra negócio, assimilada pelo capitalismo como apanágio, etimologicamente significa: nego o ócio)[7] e punido, com as pessoas sendo presas por “vagabundagem”; um período em que o tempo se tornou uma variável do mercado e monetarizado (“time is money").  

Claro está que aqui, diferente de algumas abordagens superficiais sobre o corpo (por vezes, revestidas de arrogância – a arrogância da ignorância), nos encontramos perante aquela perspectiva sublinhada por Nicos Poulantzas segundo a qual a individualização do corpo social como esfera em que é exercido o poder do Estado moderno desempenha um papel central na engrenagem do sistema societal[8]. Por óbvio, é sobre o corpo que primeiro incidem as relações de poder e controle, mas, ao contrário do que alguns presunçosos ilusoriamente pensam, não se trata, por exemplo, de um corpo atomizado, mas relacional, relativamente ao qual o Estado – exercendo o poder - lança mão de técnicas e modos de socialização que moldam os sujeitos e a sua corporeidade (a socialização escolar, o serviço militar, as prisões, etc., são expressão disso).  

Tendo em atenção as implicações da relação com a divisão social do trabalho, pode-se dizer que a Ritmanálise, na senda de Henri Lefebvre, considera diferentes corpos e diferentes ritmos. Estando aí presentes, entre outros, os corpos e ritmos subjugados, os quais requerem um olhar sentipensante, conforme a expressão consagrada pelo sociólogo e referência da Educação Popular colombiana Orlando Fals Borda[9].

Os ritmos estão em toda parte. Contudo, as noções a seu respeito diferem subjetivamente de acordo com os interesses em pauta. Nesse sentido, sustenta Lefebvre que os músicos tendem a perceber os ritmos em estreita relação com a noção do compasso e medida; historiadores e economistas definem os ritmos tendo presente à noção de ciclos e eras; ginastas relacionam-se com sequências de movimentos aeróbicos. A propósito, a pesquisadora Catherine Ellis[10], ao estudar os aborígenes australianos, através da música, descobriu que a batida fundamental do tambor sempre flutua perto da batida do coração.  

Dadas as circunstâncias desta exposição e o caráter sintético deste texto (um resumo estendido, relembro), não tenho como tratar das especificidades da operacionalização metodológica da Ritmanálise, conforme o enfoque lefebvreano. Contudo, permito-me assinalar o seguinte: 1) trata-se de uma perspectiva relacionada ao legado marxiano assumido por Lefebvre, considerando o método histórico-dialético; 2) como decorrência, o corpo é concebido como o concreto/o ponto de partida, com a análise seguindo em direção à dimensão do abstrato, para logo se relacionar com a dimensão do concreto, sempre tendo em atenção o cuidado com a explicitação do real e seu movimento; 3) o ritmanalista deve ser capaz, num primeiro tempo, de escutar o seu próprio corpo e afinar as suas percepções (é necessário pensar a totalidade a partir de totalizações); 4) ressonância e presença: estar à escuta significa também prestar atenção à ressonância dos ritmos,  assim consegue-se perceber melhor a presença; o gesto ritmanalítico transforma tudo em presença, não se aprisiona na ideologia das coisas, ele integra as coisas (parede, mesa, árvores, etc.) num porvir dramático, num conjunto cheio de sentido.

O projeto ritmanalítico de Lefebvre é de grande amplitude, assim como o é o seu próprio pensamento. Pretendo atribuir à Ritmanálise um estatuto de ciência autônoma, foi além das formulações anteriores a seu respeito e da mera ideia de recurso metodológico. É de se notar, também, que “quebrou” o monopólio das abordagens sobre o corpo que era exercido por correntes alheias ao legado marxiano.

4 – Rimanálise e Educação Popular

De forma bastante reveladora quanto às “peculiaridades” do campo da Educação Popular, a relação dele com a Ritmanálise tem sido feita por agentes de outros campos do conhecimento. É o que pode ser verificado, por exemplo, em um trabalho dos pesquisadores Luiz Menna-Barreto e Cláudia Espírito-Santo, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP). Eles procuram articular a abordagem da Ritmanálise realizada por Lefebvre com enfoques de Paulo Freire. Afirmam os referidos pesquisadores:

Verificamos a aproximação da proposta de ritmanálise de Henri Lefebvre, de entender o tempo e o espaço como indissociáveis, com a visão de Paulo Freire de conceber a escola como espaço de convivência e troca de experiências, sendo que essa convivência, no nosso entendimento, deve ser planejada física e temporalmente, contemplando todos os sujeitos envolvidos em sua integralidade, pois é no ambiente escolar, entre outros tantos lugares, que uma sociedade será construída democraticamente[11].

Por certo, eles realizam uma apropriação pertinente do pensamento de Lefebvre, captando dimensões centrais, como: i) a relação entre a vida cotidiana e os ritmos, partindo de uma análise da criação do tempo; ii) o realce na estruturação da vida cotidiana como baseada no tempo abstrato e quantitativo dos relógios, gerando um tempo linear; iii) a ênfase nesse tempo como mecanismo que se impõe no cotidiano das cidades modernas fornecendo a medida da jornada de trabalho, com a organização do trabalho no espaço-tempo passando  a subordinar outros aspectos da vida cotidiana, como  horas de sono e vigília, momentos de refeições e horas de privacidade, relacionamentos familiares e amorosos, entretenimento, etc.; iv) o destaque no fato de que, apesar de tal realidade,  vida ainda é marcada por ritmos cósmicos e vitais, que são cíclicos: dia e noite, meses e estações do ano, e mais precisamente por ritmos biológicos. Trata-se de uma interpretação primorosa de Lefebvre e da Ritmanálise.

O ponto de conexão entre a Ritmanálise lefebvreana e Paulo Freire, apresentado pelos referidos pesquisadores, incide sobre a escola como espaço-tempo de ocupação. A meu ver, cabem aí duas considerações. A primeira é que essa relação carece de mais adensamento, pois, apesar de haver indicativos para a sua efetivação, eles têm estatutos teórico-analíticos diferentes. A segunda consideração diz respeito ao próprio conceito de educação, para muitos, praticamente reduzido à escola, o que é certamente um equívoco. A potência da Ritmanálise relacionada à Educação Popular vai além da educação escolar, e mesmo as experiências (ou “objetos de estudo”) escolares focadas sob a ótica ritmanalítica requerem que se tenha em conta o escrutínio da educação que acontece fora da escola.

De toda forma, o trabalho de Menna-Barreto e Espírito Santo não deixa de ser alvissareiro ao estabelecer uma relação entre a Ritmanálise lefebvreana e o campo da Educação Popular.

 5 – À guisa de conclusão

A Ritmanálise teve como berço Lisboa, floresceu no Rio de Janeiro e encontrou interlocução em Paris, onde a pena de Bachelard e, principalmente, a de Henri Lefebvre alçaram o seu reconhecimento cosmopolita. Como diz Rodrigo Sobral da Cunha[12], há uma compreensão rítmica do universo, da qual a Ritmálise é um renovado e elevado paradigma e que, sem dúvida, nem só ao microscópio e ao telescópio, ou ao cinema, ou às “ciências da vida”, ou à cibernética e às semióticas, cabe ampliar e aprofundar.

Os humanos da época tecnocientífica vivem controlados por programas e mecanismos, máquinas e aparelhos, que funcionam segundo o princípio da repetição (enfatizada pela Ritmanálise) cada vez mais automatizada. Porém, na repetição mecânica, não existe subjetividade individual criadora e reflexão autônoma;  portanto, tampouco existe ritmo inovador e processos emancipatórios. Possivelmente estamos, como já foi enfatizado pela perspectiva libertária de Noam Chomsky[13], diante de um dos mais duros ataques já vistos na história contra a reflexão analítica e a ciência. Supostos pensamentos críticos, muitas vezes, não só se têm revelado ignorantes e impotentes diante de tal realidade, mas até mesmo têm sido capturados pelas lógicas fragmentárias das redes que a estruturam, na medida em que repetem discursos e práticas que servem inteiramente à reprodução sistêmica.

Por sua origem sócio-histórica, espera-se que a Educação Popular não só não caia nas teias das mencionadas redes, mas que seja capaz de produzir conhecimento, com consistência reflexivo-conceitual, para orientar a construção de quadros alternativos de mapas cognitivos, de socialização e de intervenção social. Nesse sentido, a razão preconizada pela Ritmanálise tem algo a dizer.

 Notas



[1] Ver DIAS, Geraldo - Nietzsche, precursor da Ritmanálise? A recepção luso-brasileira do pensamento nietzschiano pelo Filósofo fantasma Lúcio Pinheiro dos Santos. Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v. 11, nº 3, p. 41-58, 2018.

[2] Luís Alberto Pinheiro dos Santos nasceu em Braga/Portugal e formou-se em Matemática e Física pela Escola Politécnica de Lisboa. Em 1912, fez estudos na Bélgica e França. Neste último caso, assistindo aos cursos de Bergson no College de France. Nessa época, conheceu o então jovem Gaston Bachelard. Em 1917, emigrou para o Brasil, regressando a Portugal em 1919 e tornando-se professor na Universidade do Porto. Após o golpe de Estado de 1926, voltou ao Brasil novamente, vindo a falecer no Rio de Janeiro em 11 de novembro de 1950.

[3] BACHELARD, Gaston - La dialectique de la durée. 5 ed. Paris : PUF, 2013.

[4] Cf. DA CUNHA, Paulo Ferreira - O essencial sobre ritmanálise. Alfragide: Ed. Leya, 2012.

[5] Ver CUNHA, Rodrigo Sobral. A Filosofia do Ritmo Portuguesa: da Monadologia Rítmica de Leonardo Coimbra a Lúcio Pinheiro dos Santos e a Ritmanálise. Philosophica, 31, Lisboa, 2008, pp. 161-191.

[6] Há que se registrar, no entanto, que a dialética em Lefebvre recebe um tratamento original, relacionado, por exemplo, ao conceito de espaço.

[7] No caso, venda e compra de mercadorias, transações materiais e simbólicas de reprodução do capital, comércio da mercadoria ‘especial’ que é a mão de obra, adquirida como mercadoria matricial que, submetida à exploração, gera mais valor (mais-valia absoluta e mais-valia relativa).

[8] Ver POULANTZAS, Nicos – L’Etat, le pouvoir, le socialisme. Paris: PUF, 1978.

[9] Ver FALS BORDA, Orlando – Una sociología sentipensante para América Latina (ontología). Bogotá: CLACSO/Siglo del Hombre Editores, 2009.

 [10] Cf. ELLIS, Catherine J. - Aboriginal Music Making: A Study of Central Australian Music. Adelaide: Libraries Board of South Australia, 1964.

[11] Cf. MENNA-BARRETO, Luís; ESPÍRITO-SANTO, Cláudia (2020). Tempo de democracia: uma proposta de aproximação do pensamento de Paulo Freire com a cronobiologia. Revista de Estudos Culturais – EACH USP, nº 5, 83-101.

[12] Op. cit.

[13] CHMOMOSKY, Noam – Esta inteligência artificial é o ataque mais radical ao pensamento crítico. Jornal O Público. Lisboa: 28/04/2023.

Postagens mais visitadas deste blog

De África: Pesquisador/Reitor de universidade angolana fará conferência na UFPB

Ritmanálise e pesquisa em debate: Carlos Machado na UFPB

Colóquio Educação Popular: múltiplas abordagens