O lugar da cultura na educação

 

Carlos Rodrigues Brandão (1940-2023): educação
como cultura, escrita do ser para existir 

Por Carlos Rodrigues Brandão

 

Somos seres da natureza vivida como alguma experiência de cultura. Mas o que é, em síntese, “aquilo” que tornou possível saltarmos do mundo da natureza- de-que-somos - e da qual afortunadamente nunca saímos inteiramente – para os mundos da cultura-que-criamos?

A resposta deve ser procurada dentro da mente humana. Deve ser buscada na passagem da consciência reflexa = saber algo, para a consciência reflexiva = saber algo sabendo que se sabe, saber algo sabendo que se sabe e sentido algo que se sabe por saber que se sabe algo, e que se sabe que se sabe ... infinitamente. A resposta deve ser procurada, no diálogo entre nós. Ali, no momento e no lugar onde saltamos do sinal, como na fumaça do fogo para o signo, como na dança das abelhas. E, finalmente, onde saltamos para além do que nos identifica como seres-da-vida entre os animais, ao passarmos do signo ao símbolo, como nas máscaras que nós colocamos no rosto para dançarmos, ou como a palavra “dança”, seguida da palavra “abelha”, ou como “a dança das abelhas”, ou ainda, como &, como # ou como @, com o que nos dizemos algo aquém e além das palavras.

O símbolo transforma arrulhos e gemidos, sinais de desejo e de amor, em atos-como-gestos, como as palavras trocadas entre dois amantes, enquanto se amam. Mas, também, como toda a gramática de possibilidade e de interdições que até os amantes devem realizar por viverem o seu amor tanto entre os seus corpos naturais (como as abelhas, como os sabiás, como os micos leão-dourado), quanto em cenários humanos: culturas. Por isto, enquanto entre os macacos existem machos e fêmeas, entre nós criamos noivas e maridos, namoradas e amantes, filhos e sogras, “cumpadres” e padrinhos.

As “crianças-fera” (o nome do termo é horrível, mas foi o que acabou sendo aceito) encontradas na Índia após haverem sido criadas por casais de lobos, não possuíam qualquer tipo de reação reconhecidamente humana em sua conduta. Não é que não soubessem ler ou escrever. Não sabiam nem mesmo rir e nem chorar. Não sabiam andar e sentar como um ser humano. Não sabiam dar ao rosto qualquer ar de uma criança ou de um adolescente minimamente socializado dentro do meio humano de mulheres e de homens. Não haviam aprendido a serem pessoas humanas, embora fossem, como qualquer um de nós, seres humanos. Nasceram por ventura com toda a biopsicologia apta a se tornarem como qualquer criança de uma aldeia indiana. Mas não aprenderam a se construírem como humanos. Sobreviveram como organismos, mas não tiveram como realizar neles uma pessoa. Viviam imersas no mundo dos sinais e dos signos naturais trocados entre seus pais e parentes lobos, adotivos. Ficaram aquém do símbolo. Sorrir é um “ato natural”, mas quando aprendido a ser vivido como um “gesto cultural”.

É com símbolos que pensamos, mais do que com puros significados racionais, despidos das imagens que os denunciam antes de que sejam falados. É só porque uma árvore evoca uma árvore, que evoca uma cena sob a árvore, que evoca um poema, que evoca um rosto, que nós podemos pensar. Pensar para criar uma ideia e pensar para criar uma imagem. Pensar para criar uma teoria botânica da árvore ou pensar para criar uma canção de ninar que fale de uma criança debaixo de uma árvore. Pensar com a linguagem que transforma os símbolos no modo humano de interagir. “A palavra é a minha quarta dimensão”, escreveu um dia Clarisse Lispector.

E é através de sentimentos provocados pelo poder da evocação, da imaginação, que todos e cada um de nós participamos da própria criação. Nada existe na cultura de propriamente humano e que tenha sido feito por nós, que não contenha em si uma centelha da criação.

Por havermos surgido no Mundo como uma espécie de seres muito despreparados para viver, aprendemos a saber de uma maneira extraordinariamente complexa e passível de variedades. E como o saber em nós não é inato, não vem pronto do código genético e é somente complementarmente “acabado” até chegar ao seu limite de realização, sendo, ao contrário, uma construção sem limites, aprendemos-a-saber, mais do que apenas aprendemos-para-saber. Assim, fomos forçados a aprender a criar e a prever o novo e torná-lo em algum plano do real, algo partilhável. O saber é o nosso “instinto” e o criar é um saber que começa de novo a cada instante.

Dizem os antropólogos que uma cultura “funciona bem” quando aquilo que é importante nela acaba sendo “esquecido” da preocupação das pessoas que, não obstante seguem os seus preceitos e acreditam em seus princípios. Esquecido entre pessoas que vivem as suas regras sociais e acreditam nos seus mitos como o bom motorista que dirige com rara habilidade quando o faz sem precisar pensar sobre o que está fazendo. Como falar tão bem uma língua que já não é mais preciso consultar manuais de gramática.

Grande parte dos múltiplos conhecimentos dos vários campos da vida e do pensar a vida, dos valores de orientação da conduta social, das crenças de interpretação do sentido da vida, do mundo e do destino, das gramáticas culturais (como ser, como conviver, como falar, como escrever, como comer, como fazer-o-amor, como ...) são vividos como fios ou como redes dos significados de uma cultura. São vividos como “a nossa cultura”, sem serem questionados a todo o momento sobre os seus ”como”, e, melhor ainda: sobre os seus “porquê”. E às vezes exageramos nisto e em boa medida a educação existe para nos acordar deste sono sem sonhos.

Não devemos esquecer que, seres humanos, somos filhos, senhores e servos da palavra. Criamos um mundo regido pela palavra, pelo que nos falamos uns aos outros e pelo que lemos e escrevemos. Somos os seres da natureza que nascem e se criam do que falam. Criamos quem somos – cada pessoa, cada pequenos grupo, cada povo, cada sociedade, cada nação, cada cultura – ao nos dizermos uns aos outros quem somos e quem são “eles”: nós, os outros. É porque existe a palavra, é porque existe a linguagem e é porque sempre pode existir algo como a poesia, que nós, metáforas de nós mesmos, existimos.

Holderlin, um poeta, diz isto: o que existe os poetas fundam. Heidegger, filósofo, vai além: a palavra é a morada do ser. Que estas ideias valha tanto para uma metafísica do absoluto quanto para a nossa antropologia pedagógica em busca do sentido da vida humana através do conhecimento e da aprendizagem.

O que seria de nós se nos sentíssemos obrigados a conhecer profundamente a etiologia de uma doença e toda a farmacologia de um medicamento, a cada momento em que compramos, com a receita médica na farmácia o remédio que iremos tomar três vezes ao dia durante dois meses? Como seria intolerável viver a experiência pessoal e partilhada de uma religião se fôssemos todos teólogos!

Vivemos dentro de pluricampos semânticos criados por pessoas como nós, antes de nós. Campos de símbolos, de palavras, de frases, de estórias e de uma história, recriados nisto e naquilo por nós mesmos. Campos da vida cultural transformados pelas pessoas que nos irão suceder. E de uma maneira inevitável nós nos enredamos literalmente em um belo, sinuoso e multicomplexo tecido cultural. Uma tessitura de gestos e de textos que, através da socialização primária e da socialização secundária (sem fim), nos transformou, nos transforma e seguirá nos transformando no mesmo e no sempre mutável, porque sempre aperfeiçoável, autor cultural e ator social de nossas próprias vidas.

Em algo que afinal somos “nós”, “eu”, mas cuja inteira história, cujo futuro, cuja lógica, cuja estrutura e cuja dinâmica nos transcendem. Nunca abarcamos tudo o que está contido neste campo cultural a começar pelo ser-de-cultura pessoal que somos cada um de nós.. Nunca compreenderemos as razões de tudo o que ele contém e, no entanto, somos quem somos porque vivemos dentro dele. E porque o criamos para sermos o que somos. Terra metafórica onde nascemos, casa de partilhas onde vivemos, nave que nos leva para um rumo que humildemente podemos antever, sem nunca ter certezas de quando vamos chegar e de onde iremos aportar ... se é que isto ir acontecer algum dia.

Mesmo aquilo que consideramos como nossas ideias e nossos pensamentos, nossas crenças e nossas convicções “próprias”, constitui, na realidade, algumas leituras de algumas variações de sintaxes e de semânticas sociais já preconfiguradas e predefinidas. Nascemos dentro de uma longa peça e no meio de um ato que os que nos antecederam encenam antes de nós. Mas, uma vez dentro “dele”, tudo o que se faz “ali” deve ter um pouco de nós também.

É como escrever algo “meu” em um disquete formatado, onde há um texto inapagável, com o qual no máximo eu posso entrar em diálogo. Mas isso é tudo, porque existe o diálogo. Mesmo para as pessoas mais criativas, os mundos culturais onde vivemos e do qual somos parte e partilha, parecem mais com caraoquês do que com fitas virgens em um gravador de boa qualidade. Mas, ainda assim, cada um de nós é como se faz, e “canta como pode”. Ou melhor: “como aprendeu a cantar”. Melhor ainda, como ”aprende e reaprende, a cada momento, a cantar”.

O nosso corpo aprende íntima, orgânica e espiritualmente associado à nossa mente. E ela será outra coisa que não uma dimensão dele? E ele, dela? O corpo aprende a adaptar-se ao seu meio ambiente natural. Aprende a saber pouco a pouco sobre como deitar e sentar, como andar e parar, como manter-se em equilíbrio, como reagir ao frio, ao calor, ao perigo e à fome. Ora, assim também outras esferas de nosso psiquismo aprendem a lidar com a cultura de que são/somos parte. Aprendem com sabedoria a adaptar-se, aprendendo a conviver e, mais do que tudo, aprendem criativamente a equilibrar- se no/com os seus ambientes culturais. Que não são nunca, não esquecer, uma “coisa” pronta, acabada e consagrada. Que são, antes os tecidos nunca acabados de eixos e feixes, de teias e tramas dinâmicas e bastante imprevisíveis dos símbolos e dos significados com que entretecemos a cada instante, ao mesmo tempo, os mundos de que somos pessoas e as pessoas que somos nestes mundos.

A cada momento descobrimos algo mais a respeito de como cada um destes meio-ambientes se enlaça com e se entrelaça dentro de um todo regedor da vida e da vida humana. Um campo de relações que apenas quando tomado no seu todo – inclusive e principalmente enquanto um tecido contínuo e dinâmico de aprendizagens – constitui neste todo integrador de todos os sistemas ambientais e em cada um destes meio-ambientes, aquilo que poderíamos dar, afinal, o nome de um ”ambiente inteiro”.

A educadores importa transformar este aparente “sinal menos” na relação pessoa-cultura, ou mente individual-campo de significados, em um “sinal mais”. Porque o que passa é que na dinâmica inevitável das interações entre as pessoas, entre as pessoas e os seus símbolos, entre símbolos e símbolos (ou entre significados e significados), o que está acontecendo todo o tempo é uma fascinante relação dialógica entre a criação interpessoal da cultura e a criação cultural da pessoa.

Pois tudo o que criamos em tudo o que inventamos, é obra de uma partilha de ideias e de imaginações realizadas como ações pessoais e interpessoais. Nós criamos a todo o instante o mundo em que vivemos. Mas é dentro deste mundo e é dentro das suas culturas que cada um de nós vive e experimenta a possibilidade de interagir com sentido. Isto é, de agir interativamente com outros, entre outros, atribuindo sentido a nós mesmo e aos outros, e recebendo de outros a atribuição  de sentido sobre nós mesmos e sobre eles próprios. O mundo em que vivemos nos cria e recria continuamente.

Tentemos de novo.

Somos nós, seres inteligentes, receptivos ao novo, eternamente abertos a inovar, a tentar outra vez e até mesmo a “zerar” o feito e fazer o novo e a aprender sem parar, aqueles entes da vida que criam o mundo dos tecidos sociais e simbólicos que nos cria, nunca de uma vez para sempre, mas sempre um pouco mais, e mais adiante.

Aprender é, também, saber como lidar de maneira inteligente e progressivamente autônoma (o oposto de autômata) com esses vários fios entrelaçados e com esses vários padrões de cores, de tons e de efeitos de toques metafóricos do tecido cultural de quem somos. Mas aprender é também saber como participar dos eventos através dos quais este tecido se retece, essas cores se retingem e esse tons se recriam.

Pois o que nos torna humanos é o fato de que entre nós é impossível aprender e reequilibrar interiormente a vida e a inteligência através de cada saber adquirido, sem participarmos de algum modo ativo do fluxo de sentidos e de ações que reequilibram nossos contextos de vida e de pensamento.

Se, de um lado, a cultura “apaga” ou torna opaca à consciência uma boa gama do que aprendemos e seguirmos, ao vivê-la, de outro lado podemos imaginar que na história social da cultura nada se apaga de tudo o que foi pensado. De tudo o que, pensado, viveu o seu momento de diálogo entre duas vidas, entre pessoas de uma comunidade de consciência, como uma sala-de-aulas.

O que alguém pensou um dia e colocou em diálogo pode até mesmo ser esquecido, mas nunca mais se apaga. De todo o bom pensamento – aquele que cria algo ao ser criado como um gesto de aprender – sempre algo subsiste, mesmo quando nada dele tenha sido escrito ou registrado de alguma outra maneira. Porque todo o bom pensamento salta do seu breve momento para uma duração universal. Não seria uma metáfora fantástica imaginar que um pensamento carregado de sentido salta de seu aqui-e-agora, de seu lugar de origem, de seu momento de gesto-nascido, para a imensidão dos espaços culturais de partilha de sentido onde haverão de estar os pensamentos que o acolhem.

E aqui, ao falar outra vez a palavra “criação”, temo que seja para contradizer, pelo menos em parte, o que escrevi até esta página. Eu me explico. De algum modo o que eu penso a cada instante, o que eu acabo de pensar, o que estive pensando hoje, quase nada possui de criação absolutamente original. Não é algo da minha exclusiva autoria e, portanto, sequer pode ser minha posse. Eu bem sei que penso os meus pensamentos, mas com que cuidados devo dizer: “este pensamento é meu”. Pois cada um dos pensamentos “meus”, é uma parte do fluxo cultural das teias e das tessituras de sentidos e de sentimentos de eu que faço parte. Em algum  lugar Lacan disse um dia: “sou onde não me penso”. Terá sido por isto? Creio que não, mas faz algum sentido.

Não quero exagerar no dizer que isto que estou pensando para escrever, aqui, neste agora irrepetível, é um breve instante em que ideias e pensamentos “ideadas” e “pensados” por outras pessoas passam por mim. E chegam a mim, atingem um lugar de/em minha consciência e, querendo-o ou não, me convocam a entrar em um diálogo sem começo e sem final conhecidos, identificáveis, quando, por um momento entre tantos, me é dada a palavra.

Dentro de mundos de cultura, o que se cria e o que cria algo à sua volta faz parte e, dinamicamente, constitui uma comunidade de imaginários de que cada um de nós é mais um companheiro de destino do que um hospedeiro. Mais um convidado do que um proprietário, e mais uma reticência do que um ponto final.


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