Cidades (in)sustentáveis e turismo predatório

 


Por Ivonaldo Leite (Sociólogo,  PhD, professor na Universidade Federal da Paraíba; integrante da Global Ecosocialist Network: http://www.globalecosocialistnetwork.net/

Ao longo do percurso dos estudos sobre o espaço, durante os últimos cinquenta anos, um contributo central da sociologia foi pôr em realce que o espaço urbano é uma expressão concreta de um conjunto histórico no qual uma determinada sociedade se especifica, conforme assinalou nomeadamente Manuel Castells.

Portanto, não há teoria do espaço que não pressuponha uma teoria social mais geral, pois o espaço está relacionado a processos que manifestam os fatores condicionantes de cada tipo e de cada período da organização social. De resto, importa ter em conta que, na cidade, a esfera econômica configura os vínculos entre força de trabalho, meios de produção e não trabalho. Mais concretamente, isto significa a incidência sobre as atividades de produção, a circulação das trocas comerciais e o consumo de bens. Por outra parte, a esfera política trata da gestão e da regulação dessas atividades, tendo-se ainda o âmbito ideológico que traduz e expressa aspectos axiológicos e simbólicos.

Ao fim e ao cabo, uma das características da questão urbana diz respeito ao fato de que a cidade é o espaço de reprodução da força de trabalho, o que ocorre sob o registro de um quadro conflitivo com o capital. Dessa forma, a abordagem sobre o mundo urbano requer o uso de dispositivos analíticos que tenham em atenção o seu concreto-real e as manifestações dos agentes que questionam esse concreto-real. Disso resulta que está em causa, entre outros imperativos, considerar as pessoas, os seus interesses, os jogos de poder, etc., como importantes componentes da cidade.

De questões como essas, Henri Lefebvre se ocupou intensamente em sua vasta obra, em livros como ‘A Cidade do Capital’ e o ‘Direito à Cidade”. Hoje a questão urbana assume novas configurações, estando aí presente, por exemplo, a temática ambiental articulada com a (in)sustentabilidade das cidades e o chamado overtourism, expressão da língua inglesa traduzida como ‘turismo predatório’.

Cidades como Porto, em Portugal, Veneza, na Itália, e Barcelona, na Espanha, são exemplos de lugares que têm vivido o dito ‘turismo predatório’, a ponto de os seus habitantes se mobilizarem contra a ‘indústria desenfreada do turismo’.  No Porto, cidade em que vivi antes da explosão do overtourism, e que visito com frequência, são visíveis os  impactos da massificação turística sobre o lugar em si e a vida das pessoas.  Algumas das características/consequências do turismo predatório são a degradação dos recursos naturais, a migração de moradores locais para outros espaços por causa do aumento do custo de vida, a especulação imobiliária e a descaracterização da cultura local. A médio/longo prazo, o turismo predatório lança as cidades na insustentabilidade ambiental, econômica e social. E gera exclusão.

Protesto em Lisboa, Portugal,
contra o 'turismo predatório' 

Como decorrência, mundo afora, já se começa a pensar em ações e políticas públicas para enfrentar os efeitos do turismo predatório. Nesse sentido, algumas cidades têm cobrado taxas extras a visitantes, como forma de amortizar o problema. A Suíça tem ido mais além, e, já há algum tempo, busca controlar o fluxo de visitantes ao país. Em cima da mesa, está a ideia de procurar garantir um ‘turismo sustentável’. Possível?

Não parece ser uma tarefa fácil, por vários fatores. Dentre eles, o fato de a agenda política de gestores, em geral, ser fortemente orientada pelos retornos de curto prazo, além de, muitas vezes, “políticas públicas” não serem definidas com base em evidência científica. De resto, como temos afirmado em nossa rede (Global Ecosocialist Network: http://www.globalecosocialistnetwork.net/), o movimento desregulado da acumulação de capital não funciona com base na racionalidade, mas em puro profit. E assim tem acontecido com a ‘economia predatória do turismo’, sem levar em conta as suas consequências.

No Brasil, cidades que foram "batidas" por explosões em massa de turismo, atualmente, não parecem colher os melhores frutos. Natal é um exemplo a esse respeito. Como João Pessoa, cidade onde vivo, agora está “na onda”, possivelmente dever-se-ia tirar ilações em relação a outros lugares; fazer comparações, para se ter uma perspectiva sobre o  que é melhor para a capital dos paraibanos.

Em seu ‘Direito à Cidade’, Lefebvre realçou uma tese paradigmática, qual seja: A realização da sociedade urbana exige uma planificação orientada para as necessidades sociais, as necessidades da sociedade urbana. Ela necessita de uma ciência da cidade (das relações e correlações na vida urbana). Necessita, também, de uma força social e política coletiva (Lefebvre, Henri, Le droit à vile, Paris: Economica, 2009). Se, de fato, pretende-se buscar a sustentabilidade para as cidades e evitar as consequências do turismo predatório, provavelmente precisamos começar por essa perspectiva.

 

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