A coragem como virtude e os últimos combatentes

 

(Texto resultante de intervenção em sessão pública de debate sobre o livro Uma Esquerda Armada: Militância, Assaltos e Finanças do PCBR na década de 1980)

É preciso escovar a história a contrapelo
(Walter Benjamin, filósofo judeu) 

 POR IVONALDO NERES LEITE 

Agradeço pelo convite para fazer um comentário a este imprescindível livro, que narra um pedaço da história subterrânea de muitos de uma geração que, com erros e acertos, não se furtaram ao bom combate em nome das causas que abraçaram. E levaram às últimas consequências o seu engajamento. Também é a minha história. Antes, porém, permitam-me mencionar dois pensamentos emblemáticos de dois grandes brasileiros.

O primeiro é Antonio Candido, e o cito ‘de cabeça’. Ao comentar o significado de Raízes do Brasil, livro clássico de Sérgio Buarque de Holanda, diz-nos ele:  A certa altura da vida, vai ficando possível dar balanço no passado sem cair na autocomplacência, pois o nosso testemunho se torna registro da experiência de muitos, de todos que, pertencendo ao que se denomina uma geração, julgam-se, a princípio, diferentes uns dos outros e vão, aos poucos, ficando tão iguais, que acabam desaparecendo como indivíduos para se dissolverem nas características gerais da sua época.

O segundo é João Guimarães Rosa. Afirma-nos ele: o correr da vida embrulha tudo; a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí desaperta, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. 

Cito estes dois grandes brasileiros neste meu comentário ao livro Estratégias de uma Esquerda Armada, por duas razões substancias: 1) o medo de fazer o que deve ser feito, de dizer o que deve ser dito, o receio de cara “estampando insatisfação”, etc., só encontra abrigo entre os covardes, e a covardia não é uma virtude, virtude é coragem, como já ensinava Aristóteles; 2) por outro lado, é preciso atenção para não cair na autocomplacência; o passar dos anos ajuda a evitar isso.

Penso que o livro Estratégias de uma Esquerda Armada, editado pela Editora da Universidade Federal da Bahia, é uma referência no que acabo de realçar. Conta uma história de coragem, que não poderia ser a história de frouxos, sem cair na autocomplacência. O título também poderia ser outro: ‘Os Últimos Combatentes de Armas na Mão contra a Ditadura’ ou ‘A Virtude e os Últimos Combatentes’. Para todos aqueles que, como eu, jovens, muitos jovens, viveram o contexto da história narrada pelo livro, e da transição da ditadura à democracia no Brasil, ler a obra significa ‘dar balanço de uma geração’, como diz Antonio Candido. Foi um erro ter empunhado armas para tentar fazer triunfar uma causa?  Profecia de fato consumado não vale. Ou, como dizem os historiadores, não se deve cometer anacronismo na interpretação dos acontecimentos.

Isso vale, portanto, para a abordagem a ser feita sobre os jovens-adolescentes, de barbas ralas e cabelos rebeldes, daquela época, que tentavam derrubar o sistema. É fato que a ação de, digamos, “desapropriação do capitalismo financeiro” realizada na agência do Banco do Brasil do Campus da Universidade Federal da Bahia foi algo extremo. Isso foi!  Contudo, mais do que extrema foi a ação da ditatura civil-militar brasileira.

Estratégias de uma Esquerda Armada tem o mérito de resgatar uma história subterrânea de quem entende que a verdade na esfera pública (na universidade, na política, nas organizações sociais, etc.) tem um valor revolucionário. E por isso há que ter coerência, e não se acovardar deixando de fazer o que precisa ser feito. Trata-se de uma das ilações relevantes proporcionadas pela leitura da obra, principalmente num tempo em que, até no campo progressista e em contextos expressivos ditos populares, campeiam a dissimulação, a mentira,  o oportunismo, a deslealdade, as tramas de bastidores, a canalhice, etc., e os seus agentes negam com as suas ações o que as suas palavras repetem. O livro Estratégias de uma Esquerda Armada está aí para mostrar que também esses personagens devem ser enfrentados e desmascarados. Quem foi “temperado” no contexto da história que ele narra, e dela foi protagonista, não recusa o bom combate – e até mesmo dele precisa, dele nutre-se espiritualmente.

Postagens mais visitadas deste blog

Seminário aprender a escrever e aprender com o que se escreve

Desigualdades de classe, étnico-raciais e de gênero: palestra com sociólogo português

Tese de Doutorado de egressa do CCAE/UFPB aprovada como exemplo de excelência acadêmica