A coragem como virtude e os últimos combatentes
(Texto resultante de intervenção em sessão pública de debate sobre o livro Uma Esquerda Armada: Militância, Assaltos e Finanças do PCBR na década de 1980)
POR IVONALDO NERES LEITE
Agradeço
pelo convite para fazer um comentário a este imprescindível livro, que narra um
pedaço da história subterrânea de muitos de uma geração que, com erros e
acertos, não se furtaram ao bom combate em nome das causas que abraçaram. E
levaram às últimas consequências o seu engajamento. Também é a minha história. Antes,
porém, permitam-me mencionar dois pensamentos emblemáticos de dois grandes
brasileiros.
O
primeiro é Antonio Candido, e o cito ‘de cabeça’. Ao comentar o significado de Raízes
do Brasil, livro clássico de Sérgio Buarque de Holanda, diz-nos ele: A certa altura da vida, vai
ficando possível dar balanço no passado sem cair na autocomplacência, pois o
nosso testemunho se torna registro da experiência de muitos, de todos que,
pertencendo ao que se denomina uma geração, julgam-se, a princípio, diferentes
uns dos outros e vão, aos poucos, ficando tão iguais, que acabam desaparecendo
como indivíduos para se dissolverem nas características gerais da sua época.
O segundo é
João Guimarães Rosa. Afirma-nos ele: o correr da vida embrulha tudo; a vida é assim: esquenta
e esfria, aperta e daí desaperta, sossega e depois desinquieta. O que ela quer
da gente é coragem.
Cito estes dois grandes
brasileiros neste meu comentário ao livro Estratégias de uma Esquerda Armada,
por duas razões substancias: 1) o medo de fazer o que deve ser feito, de dizer o
que deve ser dito, o receio de cara “estampando insatisfação”, etc., só
encontra abrigo entre os covardes, e a covardia não é uma virtude, virtude é
coragem, como já ensinava Aristóteles; 2) por outro lado, é preciso atenção para
não cair na autocomplacência; o passar dos anos ajuda a evitar isso.
Penso que o livro Estratégias
de uma Esquerda Armada, editado pela Editora da Universidade Federal da
Bahia, é uma referência no que acabo de realçar. Conta uma história de coragem,
que não poderia ser a história de frouxos, sem cair na autocomplacência. O
título também poderia ser outro: ‘Os Últimos Combatentes de Armas na Mão contra
a Ditadura’ ou ‘A Virtude e os Últimos Combatentes’. Para todos aqueles que,
como eu, jovens, muitos jovens, viveram o contexto da história narrada pelo
livro, e da transição da ditadura à democracia no Brasil, ler a obra significa ‘dar
balanço de uma geração’, como diz Antonio Candido. Foi um erro ter empunhado
armas para tentar fazer triunfar uma causa?
Profecia de fato consumado não vale. Ou, como dizem os historiadores, não
se deve cometer anacronismo na interpretação dos acontecimentos.
Isso vale, portanto, para a abordagem a ser feita sobre os jovens-adolescentes, de barbas ralas e cabelos rebeldes, daquela época,
que tentavam derrubar o sistema. É fato que a ação de, digamos, “desapropriação
do capitalismo financeiro” realizada na agência do Banco do Brasil do Campus da
Universidade Federal da Bahia foi algo extremo. Isso foi! Contudo, mais do que extrema foi a ação da
ditatura civil-militar brasileira.
Estratégias de uma Esquerda
Armada tem o
mérito de resgatar uma história subterrânea de quem entende que a verdade na
esfera pública (na universidade, na política, nas organizações sociais, etc.) tem
um valor revolucionário. E por isso há que ter coerência, e não se acovardar
deixando de fazer o que precisa ser feito. Trata-se de uma das ilações relevantes
proporcionadas pela leitura da obra, principalmente num tempo em que, até no
campo progressista e em contextos expressivos ditos populares, campeiam a
dissimulação, a mentira, o oportunismo, a deslealdade, as tramas de bastidores, a canalhice, etc., e os seus agentes negam
com as suas ações o que as suas palavras repetem. O livro Estratégias de uma
Esquerda Armada está aí para mostrar que também esses personagens devem ser
enfrentados e desmascarados. Quem foi “temperado” no contexto da história que
ele narra, e dela foi protagonista, não recusa o bom combate – e até mesmo dele
precisa, dele nutre-se espiritualmente.