Guerra às drogas, guerra aos pobres
A seguir, reproduzimos matéria de jornalismo investigativo do Projeto 'Una Guerra Adictiva, 50 Años Combatiendo las Drogas', referente às mazelas da 'Guerra às Drogas' na América Latina. O GEPEDUSC se associa aos propósitos do Projeto.
Por Gil Luiz Mendes, especial para a Ponte Jornalismo
(no âmbito do Projeto 'Una Guerra Adictiva, 50 Años Combatiendo las
Drogas' - um projeto de jornalismo
colaborativo e internacionalista sobre os paradoxos deixados por 50 anos da
política de drogas na América Latina, do Centro Latinoamericano de Investigación Periodística - CLIP -, Dromómanos, Ponte Jornalismo - Brasil
-, Cerosetenta - Colômbia -, El Faro - El Salvador -, El Universal e Quinto Elemento Lab
- México -, IDL-Reporteros - Peru - e Organized Crime and Corruption Reporting Project - OCCRP)
O oitavo, dos 10 filhos, de Natália Monteiro da
Silva já nasceu condenado. Mesmo antes de vir ao mundo, foi colocado atrás das
grades pela guerra às drogas. Seus primeiros dias de vida se passaram dentro de
uma cela da Colônia Penal Feminina da cidade de Recife, no Brasil. No dia 15 de
agosto de 2017, policiais civis foram até a casa da sua mãe e a levaram sob
acusação de tráfico e associação para o tráfico de drogas. Natália tinha 31
anos e estava no sétimo mês de gestação.
“Logo após o parto, toda mulher quer receber o
carinho dos parentes e eu não tive isso. Não tive nenhum familiar comigo
naquele momento. Quem estava ao meu lado logo após o nascimento do meu filho
foi um agente penitenciário”, lembra Natália. Ela ao menos escapou de ser
algemada no momento do parto, prática que atingia diversas presas e que só foi
abolida por uma lei federal sancionada
no ano em que Natália foi presa. Ela ganhou a liberdade condicional depois de
passar um ano e três meses dentro do sistema prisional. Até hoje, seu processo
ainda está em andamento, sem data para um julgamento.
Natália alega que nunca teve envolvimento com o
tráfico e que foi presa por morar na mesma casa onde seu ex-companheiro, e pai
do filho que nasceu na prisão, escondia os entorpecentes. Para o pesquisador e
juiz de execuções penais Luís Carlos Valois, autor de O Direito Penal
da Guerra às Drogas, casos como o dela são os mais comuns quando se tratam
de prisão de mulheres por crimes de tráfico. “Essa proporção de mulheres presas
por crimes de drogas é porque a mulher passa mais tempo em casa. Se fizer uma
pesquisa só de processos com invasão de domicílio vai se perceber o grande
número de prisões de mulheres em relação a homens. A polícia chega e não
encontra o filho ou o marido, que são os donos da droga, quem vai presa é a
mulher”, afirma.
As fontes oficiais divergem sobre os números de
presos no Brasil, mas todas as análises apontam para a atual lei de drogas, a
11.343, aprovada em 2006, como um dos principais fatores para a aceleração do
processo de encarceramento em massa da população brasileira. Desde a aprovação
da lei, a população carcerária aumentou em 254%, chegando ao atual número de
755.274 pessoas privadas de liberdade no Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança
Pública, do think tank Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O
número de pessoas presas por delitos ligados às drogas aumentou em 156%. Se até
2005 as pessoas presas por crimes ligados às drogas eram 9%, hoje o número
chega a 29%.
Mulheres negras, como Natália, foram especialmente
afetadas pelo encarceramento em massa impulsionado pela guerra às drogas.
Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), embora correspondam a 5%
do total de prisioneiros, 65% das mulheres presas foram
parar atrás das grades com base na lei de drogas de 2006. As pessoas negras,
que no Brasil representam 56% da população, compõem 67% dos encarcerados. Antes
da atual lei de drogas, os negros eram 58%, segundo o Fórum Brasileiro de
Segurança Pública. Um aumento de 378% na população carcerária negra, enquanto o
número de presos brancos subiu 239,5% no mesmo período.
Embora as leis brasileiras e as Regras de Bangkok,
da Organização das Nações Unidas, recomendem que mulheres grávidas e com filhos
pequenos recebam prisão domiciliar, é comum que a Justiça brasileira decida
manter mães, gestantes e lactantes atrás das grades. Foi o caso de Rosa Maria
da Silva. Seu quinto filho tinha apenas um mês quando a mãe foi levada para o
mesmo presídio onde estava Natália e o seu bebê. Negra, ainda lactante e presa
pela venda de pedras de crack aos 38 anos, ela entrou na cela com a blusa
molhada do leite que saia dos seus seios.
Seu filho teve que ir para a cadeia poucos dias
depois. Apesar de relatar que o bebê teve amparo médico e condições razoáveis
de higiene no período que estiveram na prisão, Rosa afirma que o confinamento
deixou sequelas na criança que até hoje, quatro anos depois, ainda reverberam
no dia a dia da criança.
“Às vezes os avós dele comentam algo desta época. E
ele vem me perguntar se eu estava presa. Me mostra a foto dele bebê e pergunta
se ele estava preso comigo. Eu digo que não, mas vez por outra ele escuta isso
da avó. Ele vai fazer quatro anos ainda, mas é uma criança muito inteligente e
está naquela fase que repete tudo o que ouve”, conta.
Um inferno cheio de boas intenções
Ao aumentar o encarceramento em massa da população
pobre e negra, a lei 11.343 virou o contrário do que pretendia ser. Sancionada
pelo presidente de centro-esquerda Luiz Inácio Lula da Silva, a nova lei de
drogas pretendia ser uma norma progressista, ao eliminar as penas de prisão
para os usuários de drogas. A intenção era que o usuário fosse tratado como
alguém que precisa ser amparado pelo sistema de saúde público e os traficantes
teriam menos recursos para recrutar jovens para entrar para o crime organizado.
A nova lei rompia com uma tradição proibicionista que vinha desde os anos 30 e
que havia ganhado força na década de 70, que criava punições cada vez mais
duras para todos os envolvidos com as drogas, incluindo consumidores,
produtores, vendedores.
A primeira lei de drogas do país havia sido
assinada em 1921 pelo presidente Epitácio Pessoa, proibindo “a venda de
cocaína, ópio, morfina e seus derivados”. Em 1938, o governo do ditador Getúlio
Vargas promulgou um decreto que, pela primeira vez, reprimia também o uso de
entorpecentes, incluindo a maconha. A posse e o tráfico de entorpecentes
passaram a ser tratados como crimes contra a saúde pública a partir de 1940.
Mas o número de pessoas presas por crimes
relacionados a drogas aumentou durante a ditadura militar que dominou o Brasil
de 1964 a 1985. Entre 1964 e 1974, o número total
de encarcerados no Brasil aumentou de 19.771 para 30.683, segundo o Anuário
Estatístico do Brasil, publicado pelo IBGE. Neste período, os presos por
envolvimento com tráfico ou uso de entorpecentes aumentaram de 517 para 2.135,
um crescimento de 312%.
O Brasil entra de fato na guerra às drogas em 1976,
com a Lei 6.368, que
institui “medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de
substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica”.
Essa posição se alinhava à política adotada pelos Estados Unidos desde 1971, no
governo Nixon, que fez as drogas passarem a ser o inimigo local número um do
país. “A política de repressão norte-americana foi exportada para toda a
América Latina. No Brasil, o governo militar aproveitou desse momento para
alterar a lei colocando o consumidor como criminoso. Antes só os fornecedores
de drogas eram colocados como infratores. Isso certamente foi uma influência
dos EUA aqui”, explica o historiador Athos Vieira, coordenador do projeto
“Drogas Quanto Custa Proibir”, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania
(CESeC), da Universidade Candido Mendes.
A partir dos anos 1980, com o crescimento do comércio
e popularização da cocaína, aliados ao surgimento dos primeiros grupos de
narcotraficantes organizados no país, o governo passa a intensificar ainda mais
o caráter repressivo da política de drogas. A Constituição brasileira de 1988,
implantada após o fim da ditadura, definiu o tráfico de entorpecentes como
“crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia”, ao lado da tortura e
do terrorismo.
A lei de drogas de 2006 buscou romper com a
escalada punitivista das legislações anteriores ao estabelecer o fim da pena de
encarceramento para os usuários de drogas. Na época, a proposta foi considerada
progressista demais pela ala mais conservadora do Congresso Nacional. “A nova
lei antidroga que o Presidente Lula vai sancionar é muito ruim com relação ao
usuário e ao dependente de drogas, porque não há punição nenhuma,
absolutamente. Pode-se fumar. É como se houvessem legalizado as drogas no
Brasil”, bradava, da tribuna do Senado
Federal, o pastor e cantor gospel eleito senador Magno Malta, um dia
antes da sanção da lei pelo presidente Lula.
De fato, o artigo 28 da lei prevê que os
consumidores de entorpecentes só podem ser punidos com advertência, prestação
de serviços à comunidade ou obrigação de comparecer em programas ou cursos
educativos. Os traficantes, porém, são enquadrados no artigo 33, com penas que
variam de 5 a 15 anos de prisão em regime fechado. Porém, ao não estabelecer
critérios claros, como quantidade de drogas, para diferenciar usuários de
traficantes, o texto legal deixou margem para interpretações mais rígidas da
lei.
Na prática, a diferenciação passou a ser feita por
policias, promotores e juízes com base em vieses de raça e classe social.
Pesquisadores e ativistas apontam que a polícia e o sistema de justiça criminal
passaram a enquadrar usuários de drogas pobres e negros como traficantes,
transformando a lei em uma ferramenta de controle da população negra. “Essa lei
era para diminuir o número de pessoas encarceradas, mas uma coisa que parecia
que seria boa se transformou em algo ruim em razão desse ambiente de guerra às
drogas que a gente vive”, define o juiz e pesquisador Luiz Carlos Valois.
Para a advogada e pesquisadora Dina Alves,
coordenadora do Departamento de Justiça e Segurança Pública do Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), a guerra às drogas sempre perseguiu
pessoas pretas e pobres no Brasil, mas a prática se expandiu com a lei de 2006.
“A política da repressão atinge essa população há muito tempo. O retrato disso
é a tragédia do encarceramento em massa. A nova lei de drogas de 2006 fez com
que aumentasse muito o número de pessoas presas pelo crime de tráfico. Isso se
dá através de uma interseccionalidade entre raça, classe e gênero que
influencia drasticamente no número de presos que temos hoje no Brasil”, afirma.
O ex-presidente Lula, que sancionou a lei de drogas
em 2006, nunca se arrependeu publicamente da norma. Procurado, por meio da sua
assessoria de imprensa, ele não quis comentar. Nenhum dos presidentes que veio
depois dele — Dilma Rousseff, do mesmo partido de Lula, o direitista Michel
Temer e o extrema-direitista Jair Bolsonaro — fez menção de modificá-la.
Uma ação que busca modificar a lei de 2006 e
descriminalizar totalmente o uso de drogas corre no Supremo Tribunal Federal, a
Corte Suprema brasileira, desde 2015, mas o processo está parado. Passados seis
anos, apenas três dos 11 ministros do STF votaram na ação, todos favoráveis à
descriminalização. Desde 2019, o julgamento está parado e sem data para voltar
à pauta do tribunal.
Uma lei Jim Crow brasileira
O advogado Roberto Tardelli, que é branco e por 31
anos atuou como promotor no Ministério Público de São Paulo, reconhece que a
aplicação da lei de drogas obedece a critérios racistas. “Existe uma lei e ela
tem diversas aplicações, porque ela resulta de uma soma de estereótipos
sociais. Se eu for pego com 30 gramas de maconha, ninguém vai pensar que eu estou
traficando, porque eu posso dizer que essa maconha é pra mim. Agora, se a mesma
situação se der no Capão Redondo [bairro pobre, de maioria negra, na periferia
da cidade de São Paulo], com uma pessoa negra, portando a mesma quantidade, ela
certamente será autuada por tráfico”, explica.
O viés racista começa nas abordagens feitas pela
polícia nas ruas, que originam a maior parte das prisões e atingem
desproporcionalmente a população negra. Mesmo entre pessoas pobres, 42% dos
homens negros contam que já foram alvo de abordagens abusivas da polícia,
porcentagem que cai para 34% entre os homens brancos, segundo pesquisa do Instituto Locomotiva.
Sobre isso, o comandante de uma unidade de elite da Polícia Militar de São
Paulo já declarou que as
abordagens nos bairros pobres, de maioria branca, têm de ser “diferentes” das
que são feitas nas periferias negras das cidades.
Morar num bairro pobre, por si só, é aceito como
prova, nos tribunais, de que a pessoa pode ser um traficante, e não um usuário
de drogas. No estado do Rio de Janeiro, em 75% das condenações pelo Judiciário
que somaram os crimes de tráfico e associação para o tráfico, os juízes usaram
a justificativa de que o suspeito estava em uma favela, descrita como “local
dominado por uma facção criminosa”, segundo uma pesquisa da Defensoria Pública do Estado do
Rio de Janeiro.
Os números das apreensões de drogas mostram que a
grande maioria das pessoas presas com base na lei de 2006 são meros usuários de
drogas ou, no máximo, pequenos traficantes. No Estado de São Paulo, metade das
pessoas presas por tráfico de maconha levam até 40 gramas da droga, segundo
um estudo da ONG Sou da da Paz.
No Rio de Janeiro, 28% dos “traficantes” de cocaína estavam com até 20 gramas
da droga, conforme a Defensoria Pública.
Quem é negro e pobre pode ser preso por tráfico de
drogas mesmo sem droga nenhuma, como descobriu, em 2019, o vendedor Rogério Xavier Salles,
então com 32 anos. Detido por policiais militares quando vendia balas em um
semáforo na cidade de Osasco, Salles foi denunciado à Justiça por carregar uma
substância que parecia cocaína. Mesmo depois que os exames mostraram que a
substância não era droga, o vendedor negro passou 28 dias preso. “Porque sabem
que a gente é pobre, que a gente mora em periferia, os policiais veem a gente
com outros olhos”, desabafa a mãe de Salles, Maria Inês Xavier, que procurou
autoridades e jornalistas para denunciar a injustiça e não descansou até ver o
filho livre.
O promotor Rodrigo César Coccaro, que denunciou
Salles pelo crime de tráfico de drogas sem drogas, disse que não se arrependia
da decisão e reafirmou que sua denúncia estava correta, pelo fato de o réu ter
passagens anteriores por tráfico e por ter sido preso em uma cidade onde o
tráfico de drogas é um “delito muito frequente”
Os policiais não precisam de outras provas, além da
própria palavra, para conseguir validar a prisão de uma pessoa negra e pobre
por tráfico de drogas. Três estudos diferentes,
conduzidos pelo Núcleo de Estudos da Violência
da Universidade de São Paulo, pela Defensoria Pública do Estado do
Rio de Janeiro e pelo juiz e pesquisador Luís Carlos Valois
apontaram que, em 62% a 74% das condenações por tráfico de drogas, as únicas
testemunhas ouvidas em todo o processo foram os policiais responsáveis pela
prisão do réu.
Sabendo da facilidade com que sua palavra é aceita
como verdade pelos tribunais quando se trata de suspeitos negros e pobres,
policiais corruptos levam em suas viaturas porções de droga que usam para
“plantar” com pessoas que abordam nas ruas. Se aceitam pagar um suborno,
chamado de “arrego”, são liberadas. Caso não queiram ou não possam pagar, são
enquadradas no artigo 33 da lei de drogas e respondem por tráfico, podendo
encarar penas de até 15 anos. Isso com uma pequena ajuda de promotores e juízes
que se acostumaram a aceitar sem contestar as versões policiais.
As polícias registram casos de policiais presos e expulsos da
corporação por terem sido pegos com essas porções de drogas destinadas à
extorsão, chamadas de “kit flagrantes”. No ano passado, um soldada da Polícia
Militar de São Paulo, pego com um “kit flagrante”, admitiu que
pretendia “usar a droga em ocorrências”.
Criada com o objetivo de proteger a saúde pública,
a lei de drogas fez mal para a saúde de muita gente. Foi o caso de Gabriel Prazeres Gomes,
que morreu aos 19 anos, em 28 de setembro de 2019, vítima de uma meningite que
contraiu no Centro de Detenção Provisória de Osasco, onde estava preso por
suspeita de tráfico de drogas. Antes de ser preso, havia acabado de realizar o
sonho de comprar uma moto e com ela havia começado a trabalhar como motoboy,
lutando para realizar um segundo sonho, o de casar com sua namorada. Não teve
tempo.
Segundo sua irmã, Gomes era alvo frequente de
abordagens policiais. “Eram sempre os mesmos policiais. O Gabriel era muito
brincalhão e não levava as coisas muito a sério e eu acho que isso irritava os
policiais, talvez por ele rir na hora errada”, conta. Ela conta que os
policiais que abordavam Gomes ameaçavam “forjar” o jovem negro e pobre.
Trata-se de um tipo de ameaça que passou a ser muito usada pelos policiais nas
periferias após a lei de drogas de 2006: a de enquadrar jovens negros por
tráfico “plantando” pequenas quantidades de drogas com eles.
Em 31 de julho daquele ano, segundo a família, os
policiais cumpriram a ameaça e levaram Gomes para uma delegacia. Disseram que
haviam encontrado 131,8 gramas de drogas com ele. A prova foi aceita por um
promotor e um juiz. Alvo de uma prisão preventiva, foi levado ao cárcere, onde
morreu em menos de dois meses, antes de ser julgado.
Embora a Constituição brasileira preveja que a
prisão cautelar, sem um julgamento, deva ser aplicada apenas em casos
excepcionais, na prática esse tipo de prisão se tornou uma regra para jovens
pobres e negros. Cerca de 30% das pessoas nos cárceres são presos provisórios que
ainda aguardam um julgamento. Gente como Gomes.
A enorme quantidade de presos sem julgamento faz
piorar ainda mais a situação das prisões brasileiras, que costumam amontoar
duas vezes mais pessoas do que o número de vagas disponível — em alguns estados
do norte, como Amazonas e Roraima, a lotação pode ser até 3 ou 4 vezes maior do
que o número de vagas. A situação dos cárceres é tão precária que lembra as de
um campo de extermínio. Entre 2015 e 2018, morreram em suas celas em média
1.550 pessoas, segundo dados do Conselho
Nacional do Ministério Público, a maioria de “causas naturais”, ou
seja, doenças causadas pela condições prisionais, que um ministro da Justiça já
chamou de “medievais”.
Assim, as mortes dentro das prisões se somam
àquelas praticadas pelas polícias nas ruas, que em 79% dos casos atingem
somente pessoas negras, para compor o que diversos pesquisadores,
como o ator e ativista Abdias Nascimento, falecido em 2011, chamam de genocídio
do negro brasileiro.
“Não existe guerra sem inimigo, e o objetivo de
qualquer combate é eliminar o inimigo. Só que quando falamos da guerra às
drogas esse inimigo foi criado por estereótipos sociais construídos durante os
anos. E quem é esse inimigo? É desde sempre aqueles que são diferentes dos que
estão no poder. No Brasil são aqueles que estão na periferia”, analisa Roberto
Tardelli. Assim, uma lei que foi pensada para prender menos pessoas tornou-se
mais uma lei usada para reprimir a sua população pobre.
O preço da repressão
Toda guerra tem um custo alto. Seja financeiro ou
em número de vidas perdidas. Diante dessa situação, o Centro de Estudos de
Segurança e Cidadania elaborou o estudo Drogas: Quanto Custa Proibir, que analisa o
montante de dinheiro que o Estado gasta para reprimir o uso e o comércio de
entorpecentes. Os números são grandiosos e mostram como é caro ao erário
público esse embate.
Com dados coletados em São Paulo e Rio de Janeiro,
estados com os maiores índices de pessoas presas por drogas no país, o
levantamento mostra um custo bilionário empregado por esses governos para
tentar conter o avanço das substâncias proibidas em seus territórios. Juntas,
as duas administrações públicas gastaram R$ 5,2 bilhões em apenas um ano na
aplicação da lei de drogas, levando em conta os gastos com polícias, Ministério
Público, Tribunal de Justiça, Defensoria Pública, sistema penitenciário,
sistema socioeducativo.
“Analisamos todos os órgãos que fazem parte do sistema
de segurança, começando nas polícias, passando pelo Ministério Público e o
Judiciário, até chegar no sistema prisional. A partir disso verificamos que em
São Paulo, por exemplo, foi gasto R$ 4,2 bilhões, em 2017, e nesse mesmo
período o Rio de Janeiro utilizou R$ 1 bilhão dos cofres públicos”, explica o
coordenador do estudo, Athos Vieira.
O levantamento faz um comparativo de como esses
recursos gastos com a lei de drogas poderiam ser investidos em outras
necessidades básicas para a população. No Rio de Janeiro o mesmo valor gasto
com a repressão poderia custear 252 mil alunos em escolas do ensino médio ou
beneficiar 145 mil famílias, ao longo de um ano, num programa de renda básica
equivalente ao auxílio emergencial pago durante a pandemia. Em São Paulo daria
para manter em funcionamento dois hospitais estaduais de referência como o
Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo ou construir 462 novas
escolas.
“No Rio de Janeiro a guerra às drogas tomou uma
proporção de guerra civil, mas a gente sabe que em outros lugares do Brasil as
drogas funcionam como uma capacidade de fomento econômico. O que o
proibicionismo faz é reprimir uma atividade comercial que existe há séculos.
Quando o Estado decide não regulamentar esse mercado, ele deixa nas mãos de
grupos que estão à margem da lei a administração desse negócio”, analisa Athos.
Estigma
Apesar de ter feito explodir o número de pessoas presas por tráfico de drogas no Brasil, principalmente negras, a lei de drogas não teve qualquer efeito na restrição do uso de substâncias ilícitas pela população.
De acordo com o Levantamento Nacional de Álcool e
Drogas feito em 2012 pela Universidade Federal de São Paulo, 6,8% dos
brasileiros já haviam feito uso de maconha pelo menos uma vez na vida. Cinco
anos depois, a Fundação Oswaldo Cruz fez um estudo semelhante e observou que a
porcentagem de pessoas que fizeram uso da erva era de 7,7%.
Além de não diminuir o consumo, a lei de drogas
também arruinou a vida de muitos dos consumidores de drogas que ela pretendia
proteger, ao trata-los como uma questão de saúde pública, e não de polícia.
Gente como Camila do Vale Rossatto. A polícia foi até o apartamento onde ela
estava visitando o seu namorado, no centro da cidade de São Paulo, em 19 de
agosto de 2020, após uma denúncia sobre uma briga de casal. Segundo o relato
dos policiais, ela se mostrou confusa e aparentava estar sob efeito de drogas.
No local, apreenderam 38 pequenos sacos plásticos com metanfetamina e 3 gramas
de maconha. Os indícios pareciam indicar que Rossatto tinha problemas com o uso
abusivo de drogas, mas a juíza Carla Kaari a enquadrou como traficante, com
base na lei de 2006.
Após um mês presa, ela conseguiu liberdade
provisória e passou a aguardar, apreensiva, pela conclusão do processo. O
impacto da prisão sobre Rossatto foi grande. “Era uma pessoa que não tinha
envolvimento com crime, era apenas uma usuária, que acabou entrando nessa por
estar envolvida com esse namorado. Depois que saiu da prisão, ela aparentava
estar sempre com medo e apreensiva. Ela sempre me perguntava, angustiada, se
ela ia ser presa novamente”, relata o seu
advogado, Vinícius Bento. Em 20 de maio, ela se matou. Tinha 22 anos.
Criada em nome da preservação da família
brasileira, a lei de drogas produziu um processo de encarceramento em massa que
produz marcas profundas que vem destruindo incontáveis famílias. Rosa Maria da
Silva, de quem falamos no início desta reportagem, conta que, hoje, só tem
contato com o filho mais novo que a acompanhou na prisão. Os outros quatro mais
velhos a rejeitam por ser uma ex-presidiária. Seu passado atrás das grades
também é um dos motivos que a impede de conseguir um emprego na sua área de
atuação.
“Já é difícil arrumar emprego para quem não tem nenhum antecedente, e pra gente que tem a ficha suja é pior. Eu sou cozinheira, mas só consigo trabalhos atualmente como faxineira, diarista ou quando arrumo algumas roupas para lavar. Eu tenho que pegar qualquer serviço que aparece. Para não voltar a vender drogas.”
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