A guerra na Ucrânia: vítimas, contexto e causas

 

Sociólogo Manuel Carlos Silva: problematizar 
analiticamente a guerra na Ucrânia 

                                   Por Manuel Carlos Silva  (Sociólogo, Universidade do Minho, Portugal)   

Como seres humanos não podemos ficar de modo algum indiferentes perante a morte e o sofrimento do povo  ucraniano, para o que Estados e povos estão prestando o justo auxílio humanitário. Importa sublinhar a responsabilidade primeira da Rússia na decisão da invasão da Ucrânia – aliás errada e contraproducente, em termos reputacionais, na própria estratégia de defesa da Rússia face à militarização da NATO a leste. Porém, importa também indagar causas próximas e remotas deste conflito político-militar em termos geoestratégicos.

Em 2014, o Presidente eleito da Ucrânia Yakunovich é ilegalmente derrubado por um movimento pseudorrevolucionário apoiado pelo então vice-presidente Joe Biden e liderado por um grupo de extrema-direita na Praça Maïdan. Tudo isto simplesmente porque a estratégia militar expansionista da NATO comandada pelos Estados Unidos da América (EUA), depois de ter agregado catorze países de Leste – à revelia de um acordo verbal de não expansão em 1990 entre Gorbatchev e Bush e demais líderes ocidentais aquando da implosão da URSS e do próprio entendimento de Henry Kissinger e George Kennan de uma Ucrânia neutral entre o Leste e o Oeste –, visava fazer alinhar a Ucrânia na NATO. Se este acordo-promessa e entendimento diplomático fossem seguidos, talvez o caminho da negociação poderia ser trilhado sem o desencadear da guerra na Ucrânia, em que os EUA surgem seraficamente como defensores da democracia e da liberdade e até ‘vencedores’  sem soldados do exército americano dispararem um tiro no terreno.   

Considerando as largas dezenas de intervenções dos Estados Unidos e/ou apoios a golpes de Estado no pós 2ª Guerra Mundial em vários países, nomeadamente na América Latina, na Ásia, na Europa e no Médio Oriente, à revelia do Direito Internacional e da própria ONU, tudo indica que os EUA, nomeadamente os neoconservadores e seus serviços de inteligência (CIA, Pentágono) nos governos ora republicanos ora sobretudo democratas –alimentados por think tanks como a Rand Corporation e o Atlantic Council –, têm planeado desencadear guerras por procuração em sucessivas arenas regionais, cabendo a mais recente réplica na Ucrânia, tendo como alvo a vizinha Rússia, sem quaisquer escrúpulos de que os povos e seus soldados se tornem ‘carne para canhão’. Como se explica que EUA continuem a incentivar milícias e grupos ‘insurgentes’, a desestabilizar regimes, a apoiar golpes e ‘revoluções coloridas’, a despender gastos em centenas de bases militares no mundo? Basta atentar que, no quadro do complexo industrial-militar, se aprovam nos EUA orçamentos militares astronómicos e desproporcionais à defesa do seu território com 4,7% da população mundial (em 2021, 778.000 milhões de dólares, equivalente a 50% do total dos gastos de defesa em 15 países mais militarizados). No caso concreto da Ucrânia e no quadro da operação dos EUA Defender Europe 1920-21 com deslocação de militares, expulsão de diplomatas russos, fornecimento de armas de modo direto ou indireto pelo Qatar e inclusive o recrutamento de milhares de mercenários, o presidente  Zelensky, incitado por Joe Biden e esperançado na adesão da Ucrânia à NATO, publicava a Estratégia de Segurança ucraniana, tendo como resposta o estacionamento de tropas russas junto das fronteiras com a Ucrânia (cf. Thierry Meyssan, Voltairenet, 22-04-2021).  

Se a invasão da Rússia deve ser condenada pelos sofrimentos humanos e danos materiais sobre a Ucrânia e o seu povo, a narrativa político-mediática dominante em Portugal e no Ocidente não ajuda a compreender e explicar a situação no quadro da tensão e competição entre potências, tal como o elucidam algumas poucas vozes de intelectuais, majores-generais em Portugal e, recentemente, do ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros Luís Amado em 2006-2011 (cf. Público, 31-3-2022). Se o ataque militar russo apresenta contornos de uma estratégia nacionalista e imperial do Kremlin, de Putin e seus oligarcas, seria ingénuo não considerar nessa arena as estratégias do imperialismo norte-americano e seus oligarcas e plutocratas presentes nas multinacionais e no complexo industrial-militar-financeiro, provocando a Rússia na escalada e utilizando a Ucrânia  para o efeito, assim como apoiando os interesses dos oligarcas ucranianos, com seus grupos e milícias neonazis implantadas de longa data (Batalhão Azov, Dnipro2, Shaktarsk, Aidar, Poltava (cf. Ricardo Fernandes in Setenta e Quatro, 10/3/2022). O governo ucraniano, integrando desde 2014 estes grupos no próprio exército e na Guarda Nacional, além de negar a identidade e língua russas às populações do leste da Ucrânia, violou os acordos de Minsk desde 2014 sobre a autonomia das províncias de Donetks e Lugansk, perseguindo e massacrando cerca de 14.000 cidadãos (pró)russos dessas províncias no Donbass.  

Discursos maniqueístas entre os ‘bons’, os ‘civilizados’, os ‘’liberais-democratas’ no Ocidente e os ‘maus’, os ‘bárbaros’ ou autocratas-oligarcas no Oriente, no Médio Oriente ou nas regiões eslavas do leste nomeadamente na Rússia não colhem e, neste caso, reproduzem amiúde velhos preconceitos russófobos misturados com um paradoxal anti-comunismo ‘primário’ perante um regime russo capitalista e autoritário que abandonou qualquer ideia de socialismo e/ou comunismo. Tão pouco serve ‘patologizar’ Putin como um ‘louco’ ou considerá-lo como incarnação do lúcifer e, muito menos, instrumentalizar as crenças, trasladando uma réplica da Virgem de Fátima para a Ucrânia, rememorando velhos tempos em que os párocos oravam com os crentes ‘pela conversão da Rússia e da China’! 

Para obter a desejada paz será preciso algo bem diferente: mobilizar as pessoas, pressionar as potências imperiais e imperialistas a negociar pela via diplomática o conflito e pugnar pelo cessar-fogo pela Rússia e pelo desarmamento por parte dos EUA/UE/NATO, esta aliás desnecessária desde a dissolução do Pacto de Varsóvia em 1991. Se, passado um mês de guerra, Zelensky se declarara disponível para manter a neutralidade da Ucrânia e inclusive aceitar um referendo sobre a autodeterminação das províncias (pro)russas do Donbass, por que é que não foi feita essa garantia pelos EUA e a pela Ucrânia antes da invasão deste país pela Rússia? Por que é que os EUA e a Ucrânia foram os dois únicos votos contra a resolução da ONU em 16/12/2021 contra a “glorificação do nazismo, o neonazismo e outras práticas que promovam o racismo, a xenofobia e a intolerância”? (cf. Prensa Latina, 18-12-2021). 

A estratégia belicista e expansionista dos Estados Unidos por via da NATO não está desligada dos interesses económico-industriais-petrolíferos, militares e imobiliários-financeiros. Hoje o imperialismo norte-americano, não estando interessado em negociar a paz mas em alimentar uma eventual guerra de guerrilhas na Ucrânia, visa romper a relação comercial dos países europeus, sobretudo da Alemanha, em relação à Rússia no que concerne a importação do gás pela Nord Stream II e demais energias fósseis, minerais e cereais russos. O falso aceno dos EUA  à Ucrânia para se integrar na NATO foi de facto a ‘isca’ para o despoletar da guerra e, assim, torpedear e/ou neutralizar qualquer aproximação da Alemanha e da Europa à Rússia, sob o lema ‘dividir para reinar’. Os líderes da Grã Bretanha e da UE têm-se comportado como vassalos subalternos, sem estratégia própria, disponibilizando os ‘seus’ países como sucursais de dispositivos militares da NATO, fazendo declaração seguidista pró-EUA no rearmamento da Ucrânia e sanções contra a Rússia sem a percepção dos efeitos de ricochete sobre empresas e consumidores, sobretudo os mais pobres (crise energética, inflação). Mais grave ainda é o facto de sindicatos e partidos sociais-democratas, ‘socialistas’ e outros ditos de esquerda subscreverem uma resolução no Parlamento europeu que objetivamente representa a entrada da UE/NATO no carro de guerra. A UE prepara-se para aumentar o orçamento militar em prejuízo de políticas sociais, alinha incondicionalmente com os EUA e suas ‘dores’ perante uma nova ordem mundial multipolar, a qual implicará um gradual declínio da superpotência norte-americana –  [por isso, ela] se mostra tanto ou mais agressiva – e a ascensão de potências intermédias (Rússia, Índia), e sobretudo a sobreposição da nova superpotência mundial hegemónica – a China –,  e com esta polarização, a existência de dois sistemas de geolocalização e, provavelmente, dois sistemas monetários e de crédito.   

 

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