A guerra que atinge todos nós: as razões do Coletivo Vozes Judaicas por Libertação*
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Juliana Muniz |
Por Juliana Muniz (Coletivo Vozes Judaicas por Libertação)
Outubro de 2023 não marca um início, mas a continuação de um projeto de 76 anos de colonização, configurado em um sistema de apartheid e ocupação no que se compreende como os territórios de Israel e Palestina. Se no fim do século XIX o debate sionista circulava em torno da questão da autodeterminação judaica e de possíveis resoluções para perseguições históricas, com o tempo, concretizou-se como um projeto colonial para a criação de um Estado fundado sobre a expropriação dos palestinos em 1948. Esse processo ficou conhecido como Nakba (catástrofe em árabe).
O poeta libanês Elias Khoury,
falecido há poucos dias, foi um dos primeiros a ler a Nakba não
como um evento localizado, mas como catástrofe contínua que se estende até
hoje: seja na apropriação dos territórios em 1967, no confisco em curso de
terras através dos assentamentos, no apagamento de memórias, na militarização da vida cotidiana e no
extermínio do povo palestino. Se para muitos Israel significaria a
conquista da segurança e liberdade para o povo judeu, para nós do Vozes Judaicas por Libertação, coletivo que integro, foi um sinônimo definitivo de muitas
rupturas e reconstruções.
Entro então nessa nefasta
linha do tempo a partir de uma pergunta que movimenta muito a trajetória do
coletivo: como podem conviver percepções, em escala mundial, tão opostas em
torno do mesmo fato, quando olhamos especificamente para o 07 de outubro [de
2023, data do ataque do Hamas]? Por um lado, foi imediatamente massificada a
informação de que a ação do Hamas foi o “maior ataque contra judeus desde o
Holocausto”. Nessa perspectiva, tal fato inédito autorizaria toda e qualquer
ação do exército israelense como “direito de defesa” que teria por
“consequência natural” o massacre a que assistimos. Essa inclusive é uma das
principais égides sionistas, que nomeia o exército como “Forças de Defesa de
Israel”. Nessa percepção, tanto o Hamas como os palestinos em geral, além de
estamparem exclusivamente as vestes do terrorismo, são eternamente
responsabilizados por sua própria catástrofe.
Por outro lado, como comenta o
jornalista Antony Loewenstein (2024), o 07 de outubro foi um golpe contra a crença
tão consolidada em Israel que os 2,3 milhões de palestinos habitantes de Gaza
poderiam ser confinados para sempre na maior prisão a céu aberto do mundo, sem
haver qualquer tipo de consequências. Sem justificar absolutamente os ataques
do Hamas, muito menos desprezar as vidas ceifadas neste contexto, interessa
aqui um olhar que faça distinção entre as estruturas e seus
sintomas. Desmanchando possíveis armadilhas comparativas dessa linha do
tempo, o que se dá como “resposta” a partir do dia 08/10 foi, é e sempre será
injustificável. Na compreensão de que há mais leituras do que estas
sublinhadas, nos colocamos um desafio enquanto grupo de tentar dissolver
perspectivas binárias, desestabilizar e confrontar as narrativas que insistem
em normalizar a situação palestina.
Surgimos a público enquanto
coletivo a partir da inevitabilidade da revolta e de algo mínimo que ainda não era dito de forma
coletiva aqui: um genocídio não será praticado em nosso nome, o Estado
de Israel não representa a todos os judeus e deve ser freado em suas políticas
e ações constantes de violação dos direitos dos palestinos. A criação do
grupo concretizou a possibilidade de um lugar novo em que pudéssemos
publicamente manifestar nossa solidariedade à luta palestina e, ao mesmo tempo,
afirmar e solidificar uma judeidade anticolonial e antiapartheid,
uma judeidade não sionista.
A partir do encontro de
trajetórias e origens diversas, partilhamos a ruptura com um papel muito bem
desempenhado pelas instituições sionistas ao firmarem um vínculo indissociável
entre judaísmo, judeidade e o Estado de Israel. É importante marcar que não
somos [pretensiosamente autodeclarados os] “judeus bons”, muito menos
superiores por isso. Tampouco sofremos de “auto ódio”, como muitos também nos
acusam, pois nosso posicionamento não se dá apesar de nossas identidades,
mas a partir delas. O que cabe aqui é explicitar que a
construção sionista, mais do que uma escolha racional por um posicionamento que
sustenta a legitimação do que vemos hoje, é um mosaico de manipulação de
traumas coletivos e do uso de perseguições históricas para direcionar a
aprovação que Israel exista a todo e qualquer custo.
Nos últimos anos, diversas
transformações e disputas têm ocorrido dentro e fora da comunidade judaica em
relação à Israel-Palestina. Há tanto um fortalecimento de uma direita sionista
explicitamente alinhada ao bolsonarismo e ao fascismo, como também
manifestações que reproduzem paradigmas datados e crenças como “Dois Estados
para Dois Povos” como forma de “resolução” para a questão palestina. Repudiando
o sionismo abertamente fascista e desafiando um determinado “sionismo de
esquerda”, que busca falar da Palestina sem levantar palavras como “direito de
retorno”, “reparação”, “apartheid” e “genocídio”, nos vemos sem lugar nessa comunidade judaica. Nesse
cenário, se desenhou a tarefa não só de romper, mas de construir um lugar
através da coletividade capaz de se fundar numa outra ética e política, seja na
Palestina ou no Brasil.
Ao perfurar o aparentemente
inabalável pacto entre sionismo e judaísmo, percorremos esse primeiro ano com
muitos desafios, tendo sempre no horizonte que não protagonizamos a luta e a
resistência palestinas. Entendemos nossas ações como oportunidades de
visibilizar no cenário brasileiro um posicionamento solidário desde o lugar que
cavamos para ocupar, dialogando e colaborando com os movimentos palestinos.
Desse lugar, questionamos as narrativas hegemônicas sionistas e seus representantes,
constantemente acionados como porta-vozes da comunidade judaica, que
instrumentalizam o conceito de antissemitismo para silenciar críticas ao Estado
Israel, dificultando inclusive o combate ao antissemitismo real, que é a
discriminação contra judeus pelo fato de serem judeus.
Além disso, impossível não
pautar junto de vários outros movimentos e ativistas no país a relação entre
Brasil e Israel desde seu lado mais perverso: ambos experimentam as mesmas
tecnologias em seus genocídios. Israel exporta sua tecnologia de ocupação e
tornou-se ‘referência’ na produção de armas e sistemas de vigilância e
monitoramento para o mundo, sem nenhum constrangimento de inflamar conflitos,
guerras e a violência de Estado em países por todo o globo. O Brasil, sendo um
de seus maiores compradores, além de produzir opressão e extermínio de
populações periféricas, torna-se cúmplice no genocídio do povo palestino.
Como forma de apoio concreto,
defendemos o movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), uma forma
de resistência não violenta lançada pela sociedade civil palestina em 2006 como
um apelo à comunidade internacional à não cooperação com um Estado de
apartheid. É de vital importância convocar ao rompimento de relações com
governos, empresas e instituições, dentro e fora de Israel, que contribuem com
a ocupação e o massacre do povo palestino. Através da campanha pelo Embargo
Militar, mais de 100 organizações exigiram o rompimento dos acordos militares
entre Brasil-Israel, uma relação que se iniciou nos anos 2000, e que foi
encontrando maior espaço, em especial, nos últimos anos pelas gestões dos
presidentes Michel Temer e Jair Bolsonaro. Tais acordos foram aprovados pela
Câmara dos Deputados no dia 18 de Outubro de 2023, enquanto assistíamos ao vivo
o início do maior massacre contra o povo palestino já perpetrado na história.
Não há complexidade no assunto
que nos impeça de caminhar pelo solo firme da solidariedade por uma Palestina
livre. Se as formas de exploração, dominação e opressão, nesse momento do
capitalismo, compartilham suas tecnologias e se sofisticam cada vez mais,
precisamos criar pontes que conectem nossas noções e práticas de solidariedade
e luta. Entendemos o conceito de solidariedade não como uma ideia passiva, mas,
junto do historiador Rafael Domingos (2024), como uma tecnologia de emancipação
do mundo, e isso requer nossa implicação.
Nosso ativismo se mobiliza na
certeza de que é através da coletividade que encontramos sentido na luta e no
impacto que nossos posicionamentos e ações podem ter, habitando o horizonte
universal da resistência contra a opressão e o esquecimento. Que esse horror
cesse e que a libertação da Palestina chegue junto com o direito de retorno, da
desocupação e de um processo verdadeiro de justiça e reparação. Que a sumud,
essa palavra palestina que representa permanecer firme, de profundo valor de
resiliência, nos acompanhe na luta contra a discriminação, pela descolonização
e direito à terra, por justiça e vida digna para todos os povos do mundo.
Referências:
HAASZ, et.al. Judias e judeus tornando-se
solidários à causa palestina. Publicado em: Le Monde Diplomatique
Brasil. Disponível
em:<https://diplomatique.org.br/judias-e-judeus-solidarios-causa-palestina/> Acesso: 20 set. 2024.
JABR, Samah. Sumud em tempos de genocídio. São Paulo: Ed. Tabla, 2024.
KHOURY, Elias. Rethinking The Nakba. Critical Inquiry, [S. l.], v. 38, n. 2, p. 250-266, inverno, 2012. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/10.1086/662741. Acesso em: 01 out. 2024.
LOWESTEIN, Antony. Laboratório Palestina: como Israel exporta tecnologia de ocupação para o mundo. São Paulo: Ed. Elefante, 2024.
MARTINS, Gizele. Da Palestina à Maré: a luta pelo direito à vida (relato). Disponível em:<https://wikifavelas.com.br/index.php/Da_Palestina_%C3%A0_Mar%C3%A9_-_a_luta_pelo_direito_%C3%A0_vida_(relato).> Acesso 30 set. 2024
OLIVEIRA, Rafael Domingos. Introdução. In: DOMINGOS, Rafael (Org.). Gaza no Coração: História, resistência e solidariedade na Palestina”. São Paulo: Ed. Elefante, 2024.
SAID, Edward. A questão da Palestina. São Paulo: Ed. Unesp, 2012.
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* Texto publicado sob a revisão do Prof. Ivonaldo Neres Leite (UFPB)
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