Nuno Crato e a demolição da demagogia educativa: reprovação, leitura e qualidade
Nuno Crato: qualidade na formação |
Nuno Crato, pesquisador de
referência internacional, notabilizou-se por divulgar e traduzir para o
cotidiano os grandes teoremas e equações — trabalho que o fez merecedor do
cobiçado European Science Award, em 2008. Foi Ministro da Educação
e da Ciência em Portugal, revolucionando o sistema educativo e de ciência e tecnologia
português; mas, contrariando determinadas perspectivas, foi muito questionado e
mesmo atacado, situação que persiste até hoje, embora os resultados do seu
trabalho sejam visíveis. Com uma ironia entrecortada de erudição, respondeu os
ataques chamando-os de “eduquês”, ou seja, discursos que se repetem sem nada
dizerem, mas que alimentam os grupos que os pronunciam, e mesmo rendem-lhes
algum dividendo. Por regra, baseia as suas afirmações em evidência científica,
e diz que não se pode aprovar quem não assimilou conteúdo e, portanto, não
adquiriu conhecimento. Abaixo, reprodução de passagens de uma entrevista sua.
O senhor provocou debate acirrado entre educadores do mundo todo ao afirmar que a escola moderna é vítima do “eduquês”. Por que o assunto causou tanto barulho?
Minha crítica bate de frente com uma linha muito celebrada nas escolas de hoje. É uma corrente que dá ênfase excessiva às atitudes e à formação dita supostamente “cidadã”, deixando em segundo plano o conhecimento propriamente dito. Pergunto: como investir em formação dita “cidadã” se o estudante não consegue nem ler o jornal? Vejo vários educadores por aí se perdendo em uma linguagem hermética, dúbia, demagógica e populista — que é o mais puro “eduquês" — para falar sobre seus objetivos difusos para a sala de aula. Essa turma não só resgata como radicaliza teorias do passado para combater práticas na educação que já tiveram sua eficiência amplamente atestada pela ciência. Alguns me acusam de ser insensível ao dizer tais coisas, mas sou um entusiasta do saber científico e desprezá-lo, a meu ver, só prejudica o ensino e a melhora de vida das pessoas, sobretudo dos mais necessitados. A ignorância não leva a lugar nenhum, a não ser manter as pessoas como vítimas dela.
Quais boas práticas exatamente essa ala de educadores rejeita?
Muitos batem na tecla de que prova faz mal, de que conteúdos são secundários, de que não deve haver reprovação! Acham que prova submete o aluno a um alto grau de stress, sem necessidade. Vão aí na contramão do que afirmam os grandes pesquisadores. Como podem ser tão irresponsáveis?! É de se perguntar se alguém dessa turma aceitaria ser acompanhado por algum cardiologista que terminou o curso na universidade sendo aprovado sem saber os seus conteúdos básicos, mas foi sendo aprovado período a período porque as avaliações eram farsas. Ou se aceitaria colocar um filho para ser alfabetizado por alguém que não escreve uma frase sem cometer uma infinidade de erros ortográficos. Não aceitaria, sabe por quê? Porque faz toda essa demagogia populista, mas, na verdade, coloca os seus filhos em escolas particulares tradicionais, onde os níveis de exigência são altos e, veja a contradição!, há reprovação... O discurso demagógico e populista é feito só para as escolas frequentadas pelos filhos das classes populares, os empobrecidos. É uma crueldade! Porque, com o conhecimento que os alunos empobrecidos obtêm, ficam em condição de desigualdade, e assim as diferenças sociais continuam se reproduzindo. Ademais, a disciplina é um ponto em que a condescendência e a leitura enviesada de velhas teorias ofuscam a razão. Esse grupo de educadores admite que o aluno pode ser no máximo incentivado a respeitar a organização de nível hierárquicos na sala de aula, mas nunca, sob nenhuma hipótese, ele deve ser forçado a fazer isso. Nesse caso, não é preciso de muita ciência para saber que o resultado final será muita bagunça e pouco aprendizado.
Antes de tudo, é bom
esclarecer que, embora muita gente não saiba, o construtivismo de hoje é uma
interpretação livre da teoria sobre o aprendizado lançada pelo psicólogo Jean
Piaget há um século. Para mim, sua vertente mais radical é um equívoco
pedagógico completo. Ela se baseia na ideia de que o professor não passa de um
mero "facilitador" do aprendizado. Soa bonito, mas é prejudicial ao
ensino por derrubar pilares fundamentais.
Quais são esses pilares?
Um mestre tem o dever de
transmitir a seus alunos os conteúdos nos quais se graduou. E, sim, precisa ter
objetivos bem claros e definidos sobre o que vai ensinar. É um disparate achar
que o estudante vai descobrir tudo por si mesmo e ao seu ritmo, quando julgar
interessante. Quem de bom-senso tem dúvida de que, se a criança puder esperar a
hora que bem lhe apetecer para mergulhar num assunto, talvez isso nunca
aconteça?
A neurociência vem mapeando os caminhos que a informação percorre no cérebro de uma criança até ser assimilada. As escolas já começaram a fazer uso desse conhecimento?
Infelizmente, a grande maioria
passa ao largo dessas descobertas. E isso as mantém congeladas no tempo,
aferradas a pensamentos anacrônicos. A neurociência descobriu que é possível
acelerar, e muito, o aprendizado de uma criança à base de incentivos
permanentes. Isso tromba de frente com os principais postulados de Piaget. Ele
acreditava que o processo de retenção de conhecimentos se dava por etapas muito
bem definidas, divididas segundo as faixas etárias. Muitas escolas ainda se
fiam nisso e perdem grandes oportunidades de fazer seus alunos progredirem.
Um pensamento muito em voga nas escolas modernas é o de que a criança só aprende de verdade aquilo de que ela realmente gosta. O senhor concorda?
Esse é um pensamento limitado. Veja o caso da leitura. Muitos educadores acham que, para ler bem, a criança precisa, antes de qualquer coisa, ser despertada para o gosto pela literatura. Só assim ela lerá muito e ganhará fluência, dizem. A neurociência lança uma luz interessante sobre essa questão, colocando-a exatamente ao avesso. Ela mostra que ter fluência na decodificação dos grafemas é crucial para ler bem. Em resumo: tem de se ler muito, mesmo sem gostar. O treino precisa ser permanente, exaustivo. Quanto mais automática se tomar a leitura, mais chances ela terá de ser prazerosa.
O senhor se notabilizou pela divulgação da matemática, a mais temida e odiada de todas as disciplinas escolares. Que caminhos sugere para tomá-la mais atraente?
A fórmula que eu defendo não
tem nada de mirabolante. A maior parte dos estudantes repudia a matemática
porque não consegue ultrapassar os obstáculos que ela vai colocando pelo
caminho. Eles não entendem bem os conceitos, mas, ainda assim, o professor faz
com que avancem na matéria. Assim, deficiências elementares acabam ficando para
trás. É uma bola de neve. Numa disciplina como história, mesmo sem ter
assimilado toda a narrativa sobre a colonização no Brasil, o aluno pode se
embrenhar pelo capítulo da Revolução Industrial na Inglaterra. Mas na
matemática não é possível progredir sobre uma base frágil e cheia de lacunas.
Nessa área, o conhecimento é cumulativo — um depende do outro. Sem dominar a
aritmética, não dá para passar à trigonometria. Se isso acontecer, e acontece
muito, o estudo vai se tomar improdutivo e frustrante.
Currículos muito detalhados costumam suscitar resistências por parte de educadores que se dizem tolhidos em sua liberdade de ensinar. O senhor concorda?
Sempre aparece uma turma
para empunhar a bandeira da liberdade do aluno, dizendo que ele deve aprender
sem as amarras de um currículo. Esse pessoal sustenta ainda que os currículos
são um limitador da aula porque podam as asas do professor. Felizmente, em Portugal,
são uma minoria.
E a pós-graduação?
Tem que formar bons
pesquisadores e pesquisadoras, seja em que área for. Se não é para ser assim, o
que cabe aos examinadores é reprovar as teses e dissertações. Fato esse no
qual, acontecendo, os orientadores têm muita responsabilidade, dependendo de
cada circunstância, claro. Não é admissível que teses e dissertações sejam um
festival de textos apressados, retalhos de citações, superficiais, sem
contribuição original.