Dialética da crítica a um ‘estruturalismo vulgar’: o identitarismo
Roberto Dutra
(Doutor em Sociologia; Professor do Laboratório de Gestão e
Políticas Públicas/UNEF)
Muitos colegas professores universitários
insistem em argumentar com os identitários, como se fosse possível convencê-los
de que “lugar de fala” não deve ser privilégio cognitivo. Continuam ignorando
que identitários são fascistoides que se dizem de esquerda e que não há
diferença significativa entre eles e os 12% de bolsominions que temos no país.
Ambos fazem parte da mesma ameaça ao pensamento livre e à vida pedagógica e
científica na universidade: substituem a liberdade de pensar e falar pela
lógica moralista da acusação e da suspeita. A novidade recente é que um número
crescente de intelectuais decidiu enfrentar abertamente esta ameaça. Quem acha
que pode conviver pacificamente com o identitarismo, logo vai quebrar a cara.
Assim como todos que acham ser possível dialogar com o fascismo.
Um problema da
universidade
É sempre bom
lembrar que a crítica ao identitarismo não deve ser confundida com a crítica
ao conteúdo das lutas dos movimentos sociais. Não se trata de uma crítica
aos movimentos negros, feministas ou a qualquer outro movimento, mas sim de uma
crítica à forma moralista de construção de identidades entrincheirada na
universidade. O identitarismo não é política. É moralismo inconsequente que
mais atrapalha que ajuda na busca por justiça social. Ao contrário do
bolsonarismo, cujo moralismo serve de meio odiento para manter e ampliar o
poder de sua posição política, o identitarismo não luta por protagonismo
político, mas sim pela destruição de critérios universais de validação do conhecimento
e do aprendizado.
O identitarismo é um problema da universidade porque sua pretensão de recriar a fusão entre pessoa e papel visa tornar inaceitável que se aplique critérios universais de avaliação e conduta para o fazer científico e pedagógico. Aqueles que usam o argumento de identidade reivindicam critérios próprios de acesso e avaliação do conhecimento. Os textos e os autores são lidos – sobretudo não são lidos – a partir de diferenças identitárias carregadas de moralização: o interesse não é científico nem pedagógico, mas meramente moral e acusatório. O que se quer não é compeender e criticar o argumento de um autor em sua lógica interna ou de acordo com sua aderência à realidade, mas sim acusá-lo de reproduzir o racismo, o machismo e outros “ismos”. Há aqui uma curiosa mistura de estruturalismo vulgar com moralismo: parte-se da compreensão de que certas formas de desigualdade constituem uma unidade estrutural incontornável (como o “racismo estrutural”), cuja presença na ação e no pensamento das pessoas se torna condicionada exclusivamente pela identidade e posição moral dos envolvidos: um autor “branco” torna-se potencialmente suspeito de ser racista toda vez que critica o pensamento de um autor “negro”. É como se apenas a identidade étnica ou racial permitisse distanciamento e crítica do racismo. A identidade garante privilégio cognitivo e moral. Na prática, esta mistura de estruturalismo vulgar com moralismo é uma autorização para acusar de racismo qualquer um que tenha argumentos diferentes, que pense diferente. Foi isso que aconteceu com Lilia Schwarcz em maior escala, e em menor escala com todos que criticam a pretensão autoritária e obscurantista do uso que se tem feito da ideia de “lugar de fala”. O cientista político Leonardo Avritzer, por exemplo, em um texto magnífico e de alto nível, foi acusado de reproduzir racismo estrutural pelo mesmo motivo.
É difícil reagir a esta ameaça identitária sem recorrer a sua própria
lógica moralista e acusatória. Não podemos ficar presos a esta lógica, mas
creio que precisamos, como um dos caminhos para libertar a vida universitária
da chantagem identitária, de uma dose de autêntica indignação moral contra a
desonestidade intelectual característica da lógica moralista identitária. É
preciso abominar a banalização das acusações de racismo, sexismo, etc. na vida
universitária e intelectual. Não é aceitável que colegas sejam acusados
corriqueiramente de reproduzir racismo apenas porque ousam pensar diferente.
Não é aceitável o silêncio e a complacência com este tipo de prática que nada
tem a ver com luta antiracista. É preciso dar um basta na sanha identitária de
sair apontando o dedo para todo mundo. Essa necessária indignação moral tem
como referência a defesa dos valores e critérios da vida científica e
pedagógica na universidade: os argumentos de identidade têm servido [muitas
vezes] de muleta para os preguiçosos e incompetentes, especialmente para alunos
sem disciplina e capacidade de sacrifício para a leitura e debate de textos
densos e complexos. A identidade de “oprimido” é usada como barreira moral para
a aplicação do rigor e da disciplina indispensáveis em processos pedagógicos e
científicos. O professor que ousa fazer isso é imediatamente identificado como
um “opressor”.
Estruturalismo
vulgar
No entanto, além
da indignação moral, é preciso desenvolver ou recuperar uma concepção de
crítica social das desigualdades que substitua o estruturalismo vulgar e o moralismo
identitário por uma teoria capaz de apreender a complexidade da vida social e política e
que considere a existência simultânea de estruturas sociais plurais e
contraditórias.
O discurso
identitário acredita que estruturas de desigualdade definem a unidade da
sociedade. Neste sentido, a sociedade pode ser definida como sendo de classes,
patriarcal e racista. Para não ser de classes, sexista e racista, a sociedade
teria que ser completamente outra. A identificação da sociedade com a
desigualdade obriga a pensar em uma unidade estrutural para a desigualdade,
mesmo que estas sejam plurais. Assim, o discurso identitário fala, no singular
e não no plural, da estrutura de classes, do racismo estrutural e do
patriarcado.
Este discurso
não está à altura da ciência social. A sociedade não é uma unidade estrutural,
mas uma pluralidade de sistemas nos quais diferentes formas de desigualdade emergem,
se reproduzem e se transformam. Desigualdades econômicas, políticas, jurídicas,
educacionais, afetivas não seguem a mesma estrutura, embora se influenciem
mutuamente. Por isso, classe, raça e gênero podem produzir desigualdades muito
distintas em cada uma destas esferas sociais. Um exemplo desta incongruência é
a combinação de redução das desigualdades de gênero na educação com sua maior
perenidade no mercado de trabalho. Outro exemplo é a diferença entre as estruturas do racismo na economia e no
mercado matrimonial: enquanto na economia predomina uma divisão
racial binária (negros/brancos) na determinação das chances de vida das
pessoas, no mercado matrimonial prevalece uma divisão politômica, na qual a
diferença entre pretos e pardos ganha importância que não possui para as
desigualdades econômicas.
Não existe apenas um racismo estrutural, mas vários. Não existe também o patriarcado como unidade estrutural, mas sim estruturas sociais sexistas variadas. E ainda: existem estruturas sociais que transcendem o racismo, o sexismo e o classismo. A crítica deve ser concreta e plural: quais formas de desigualdade de classe, raça e gênero determinam as chances de vida das pessoas em que sistemas sociais?
A sociedade
complexa em que vivemos nos disponiliza posições de ação e observação que nos
permitem criticar o racismo e lutar contra ele independente da identidade
racial ou étnica que nos são atribuídas por nós mesmos ou pelos outros. O
racismo estrutural não constitui uma unidade estrutural onipresente, da qual
apenas a identidade de oprimido permite tomar distância. O racismo estrutural
não existe no singular, mas apenas no plural, e em concorrência com outras
estruturas sociais e padrões normativos, a partir dos quais pessoas podem se
distanciar do racismo independente de sua identidade racial ou étnica.
Diferenciação da sociedade e multiplicidade dos lugares de fala
O conceito de
“lugar de fala” foi banalizado pela política identitária que hoje domina o discurso
progressista sobre as desigualdades sociais. Seu uso atual é predominantemente
moral, e isto destrói seu potencial de servir a um discurso mais reflexivo
(mais consciente de seus alcances e limites) sobre a desigualdade e suas
consequências: as diferentes formas de sofrimento e humilhação de pobres,
negros e mulheres. O objetivo dos identitários é demarcar posições de
superioridade moral com base em um “campeonato de sofrimento”, no qual somente
as “vítimas autênticas” da desigualdade e de suas consequências ganham o
direito de falar e discursar sobre o problema.
Isto é uma
prática moral, pois sua lógica é justamente construir julgamentos totalizantes
sobre pessoas e grupos de pessoas, o que sempre resulta em repetição do binômio
bom/mau. Não é uma prática política, pois a lógica da política é construir
decisões coletivas. E também não é uma prática de esclarecimento científico
crítico da sociedade, pois a diferença moral entre bons e maus é
insuficiente para o entendimento do
mundo, e por isso mesmo para o
melhoramento do mundo. Os identitários transformaram o conceito de “lugar
de fala” em um mesmo e único “lugar de fala puritano”, que visa catequizar
os moralmente inferiores, e não construir uma decisão coletiva (política) ou
visão esclarecedora capaz de ajudar na política (ciência).
No entanto,
julgo ser possível recuperar o conceito de “lugar de fala”. Proponho substituir
o uso moral da ideia de “lugar de fala” por uma noção sociológica de “lugar de
fala”: em vez de ser (moralmente) definido como posição de superioridade moral
de quem sofre de forma “original e autêntica” as consequências das
desigualdades sociais, defini-lo como posição parcial de observação, com
alcances e limites, em determinado sistema social.
Nesta
proposição, o elemento moral é relativizado pelo elemento cognitivo: o que
define os limites e alcances de um “lugar de fala” são a relevância e as
chances comunicativas de quem fala em um determinado sistema social. Na
política, o “lugar de fala” é definido pela relevância e repercussão na ação de
outros políticos, do público e dos setores politicamente envolvidos e
organizados, das falas proferidas, das posições tomadas, das agendas de
políticas públicas adotadas, formuladas e implementadas. Na ciência, o “lugar
de fala” é definido pela relevância e repercussão na ação de outros cientistas
de sentenças de verdade e falsidade sobre os fenômenos. Nesta visão
sociológica, não é apenas quem profere a fala, ou seja, o indivíduo ou grupo
isolado, que define o “lugar de fala” de quem quer que seja, mas também, e
prioritariamente, o modo como a fala ou discurso são entendidos, aceitos ou
recusados. O “lugar de fala” é co-produzido, como ensina a sociologia, pelo
receptor. O “lugar de fala” é um “endereço social”, uma construção comunicativa
e social fixada não apenas pela relevância pretendida pelo falante, mas também
e sobretudo pela relevância atribuída pelos ouvintes.
Na
sociedade em que vivemos, diferenciada em esferas de valor, todos nós ocupamos
não apenas um, mas vários “lugares de fala”. A ideia de que uma única
identidade, como a de negro ou de branco, de homem ou de mulher, possa unificar
e reduzir os múltiplos “lugares de fala” a um mesmo denominador comum é
equivocada, pois ignora a complexidade e a multiposicionalidade dos indivíduos
na sociedade. Sem esta diferenciação das posições sociais, que corresponde à
diferenciação de esferas sociais com valores e lógicas específicas, a vida
científica e pedagógica na universidade seria impossível como a conhecemos:
um lugar onde se espera ser possível que posições e posicionamentos científicos
e pedagógicos tenham a ver com critérios concernentes ao fazer científico e ao
fazer pedagógico, e não que sejam determinados pelo reconhecimento de
identidades prévias à vida universitária.
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