A morte e os nossos mortos: a eles tudo, por eles a nossa vida

 

 
Por Ivonaldo Leite
(Universidade Federal da Paraíba) 

Após a tragédia que foi a Segunda Guerra Mundial, o filósofo Theodor Adorno fez uma reflexão desesperada perante o horror dos que morreram nos campos de concentração. Afirmou que, tendo escapado à inumanidade, os sobreviventes não tinham o direito de viver a sua própria vida pessoal, mas sim deveriam ser solidários aos que pereceram e cuidar para que a inumanidade não triunfasse outra vez.  Por "ironia do destino",  as palavras de Adorno turvam com o espelho reverso do atual genocídio praticado em Gaza contra os palestinos.

De toda forma, tal reflexão é uma espécie de ponto de partida para uma séria meditação sobre o destino comum de todos nós, mortais, diante da morte dos outros, e principalmente dos nossos entes queridos. Há sentido em sobreviver à morte das pessoas que amamos? Afinal, como assumem algumas compreensões inspiradas em Hegel, a morte é um problema para quem fica, não para quem se foi.

Faz tempo que reflito e escrevo sobre o tema por aí. Pelas sendas de Hegel. A morte, como ele o disse,  é a coisa mais espantosa há, e guardar o que está morto é o que exige uma maior firmeza. Ela é, por um lado, o resultado final do processo de um indivíduo singular, que vive e age numa sociedade universal, e, por outro lado, ela é a negatividade natural do indivíduo que ocorre no tempo, mas que cancela o tempo absoluto do indivíduo que morre. Essa coisa espantosa cancela a existência consciente do indivíduo, indivíduo que só pode existir no espaço e no tempo, na história. A morte faz o indivíduo sair da universalidade quieta, da negatividade abstrata. À esta universalidade quieta, o morto é remetido como originalidade natural, como ente que, assim sendo, deixa de ser uma diferença, deixa de ser uma alteridade e um outro. Ele, volta ao Mesmo, ao Nada. Pelo que, na morte natural, como cancelamento da alteridade existente, não se pode encontrar nenhum consolo e nem reconciliação.

O indivíduo, ao morrer, regressa à indiferencialidade da natureza, cancelando-se a sua extensividade ativa e consciente. Cindindo-se o ser individual do agir no morto, ele torna-se uma singularidade vazia e passiva. Passa a ser lembrança de um nome carente de realidade. Este nome é somente nome para os outros que o lembram. Ele deixou de ser nome para si mesmo, ele deixou de ser autorreferência. Por isso, a maioria dos mortos permanece como uma lembrança quieta na sombra das famílias, e então assim pode-se dizer que esta visão sobre a morte constitui o lado morto do morto ou a morte do indivíduo propriamente natural.

Se o indivíduo for pensado somente como indivíduo até o fim, e é necessário – por um momento – que assim ele o seja, o indivíduo pensado será um indivíduo natural. Então, dessa maneira, o fim é trágico. Não há saída. Para a universal pergunta Para onde vamos?, só existe uma resposta: "Para lado nenhum".

Mas, e que pensamentos e sentimentos experimentamos em relação ao desaparecimento de um ente querido? Aqui parece que é possível estabelecer uma analogia em relação àquilo que Hegel expressou no que concerne à contemplação das ruínas históricas. A morte e as ruínas históricas evocam necessariamente uma reflexão sobre a degradação temporal, sobre o irrecorrível desaparecimento dos indivíduos e das coisas. Os sentimentos que experimentamos perante este tribunal do tempo nos provocam uma deprimente tristeza. Constatamos que uma vitalidade consciente, um indivíduo estimado e querido, teve de morrer e nos atormentamos no desconsole das lembranças.

Assim é a morte. Ela nos proporciona uma pergunta sem resposta: "Por quê?". Por não termos resposta, emerge uma dor profunda e, diante desta instância incontrolável, a melancolia que se apodera de nós, ora nos oprime na sensação do desaparecimento total e ora nos indaga sobre o significado e a validade das vidas individuais. Se a sensação vazia do desaparecimento que sentimos, diante do túmulo, nos provoca o luto e nos aprisiona à passividade, é na indagação sobre o significado e validade das vidas individuais onde podemos encontrar o caminho que nos conduz a superar as reflexões nostálgicas, para devolver-nos, a nós mesmos, ao mundo ativo da história.

Perante o morto não há consolo, pois ele pertence ao domínio do desaparecimento e da finitude. Somente com o nosso retorno ao mundo ativo da história dos seres humanos vivos, podemos reconciliar-nos com a universalidade da vida. Quer dizer, é na reconciliação com a vida, que nos nega consolo, que temos o lugar onde poderemos encontrar a valorização do desaparecido. Contudo, não como desaparecido, mas na expressão de sua universalidade vivida, no produto de sua atividade, que se apresenta como legado, e na significação exemplificativa de sua vida.

Isto é, o que sobrevive é a produção consciente e socialmente significativa dos indivíduos. De onde decorre que quanto mais universal for esta produção, mais sobrevive. Apenas os seres individuais conscientes podem ter uma história singular socialmente significativa. Só os seres humanos podem ter uma biografia. Quanto mais significativa e universal for a vida de um indivíduo, mais significativas e universais serão sua história singular e sua biografia. E assim sendo, cabe dizer que uma das lições que a experiência negativa da morte nos ensina, cancelando a existência concreta, é que somente o espírito, a consciência, é imortal - ele é eterna-mente. Novamente com Hegel, aqui deve dizer-se que a vida do espírito não é a vida que se ausenta diante da morte e se mantém pura da desolação, mas é a vida que sabe afrontar a morte e manter-se vida.

Hegelianamente falando, quer dizer, entendendo que o indivíduo se torna indivíduo pelo seu agir, pela sua atividade, na qual o indivíduo não é um indivíduo simplesmente porque é um ser humano existente, mas sim pela dignificação e atividades universais em que traduz a sua vida, então, mesmo que a morte natural cancele a extensividade consciente e ativa dos indivíduos, pode falar-se de um lado vivo de determinados indivíduos mortos. Isto significa pensar os indivíduos – no caso, os desaparecidos – como seres que viveram num determinado tempo e espaço, que integraram uma sociedade, que agiram e buscaram afirmar e desenvolver a sua individualidade como exemplos significativos para os outros, como uma lição de vida e de existência para os outros. Estes deram-se a si mesmos uma perspectiva universal, da qual eles são a realidade. Muitos libertários são assim, e então não morrem; por isso, Francisco Ferrer Guardia, único pedagogo da história da humanidade que foi morto por causa das suas ideias, continua entre nós. 

Como diz a escritora guadalupense Maryse Condé, os mortos só morrem se perecerem em nossos corações. Mas enquanto continuarmos a amá-los e a respeitar sua memória, enquanto continuarmos a colocar seus pratos favoritos em seus túmulos e nos retirarmos periodicamente para homenageá-los, enquanto fizermos tudo isso, eles continuarão vivos. Eles estarão por aí, ao nosso redor, em todos os lugares, sedentos de lembranças e afeto. Apenas algumas palavras serão suficientes para invocar sua presença e sentir o abraço urgente de seus corpos invisíveis, sempre impacientes para nos serem úteis”.

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Partes deste texto foram publicadas na revista portuguesa A Página da Educação, nº 186, editada na cidade do Porto. 

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