Nos 16 anos da ausência-presença de João Francisco de Souza
Por que as pessoas sonham?
- Para ver
melhor as coisas.
De onde as
pessoas vêm?
- Os deuses
as fizeram.
Onde os
deuses moram?
- Eles moram
em todas as coisas vivas.
Por que eles
fizeram as pessoas?
- Estavam
entendiados, eles fizeram as pessoas para se entreterem.
Por que os
deuses deixam as pessoas morrerem?
- As pessoas
não morrem; elas vão de uma casa para outra.
(...)
É mais fácil
ver em silêncio.
Por quê?
- Porque
pode-se ver o mundo como ele realmente é.
(Diálogo inicial do filme ‘O Enigma das
Cartas’, entre a garotinha Sally, perguntando, e um camponês mexicano,
respondendo)
Por Ivonaldo Leite (UFPB)
O diálogo em tela sempre me traz à memória as
palavras da escritora guadalupense, e feminista, Maryse Condé: “Os mortos só morrem se perecerem em nossos corações.
Mas enquanto continuarmos a amá-los e a respeitar sua memória, enquanto
continuarmos a colocar seus pratos favoritos em seus túmulos e nos retirarmos
periodicamente para homenageá-los, enquanto fizermos tudo isso, eles
continuarão vivos. Eles estarão por aí, ao nosso redor, em todos os lugares,
sedentos de lembranças e afeto. Apenas algumas palavras serão suficientes para
invocar sua presença e sentir o abraço urgente de seus corpos invisíveis,
sempre impacientes para nos serem úteis.”
Em ambos os casos, somos remetidos
a um modo de conviver com os nossos familiares e amigos que já fizeram a sua
transvivenciação. Da minha parte, como já tenho escrito mais de uma vez, à 'maneira terrena', vejo esse fenômeno de um certo modo hegeliano. A morte, se quisermos chamar à essa irrealidade, é a coisa mais
espantosa, e guardar o que está morto é o que exige uma maior firmeza. Ela é,
por um lado, o resultado final do processo de um indivíduo singular, que vive e
age numa sociedade universal, e, por outro lado, ela é a negatividade
natural do indivíduo que ocorre no tempo, mas que cancela o
tempo absoluto do indivíduo que morre. Esta coisa espantosa cancela a existência consciente do indivíduo,
indivíduo que só pode existir no espaço e no tempo, na história. A morte faz o
indivíduo sair da universalidade quieta, da negatividade abstrata. À esta
universalidade quieta, o morto é remetido como originalidade natural, como ente que, assim sendo, deixa de ser uma diferença, deixa de
ser uma alteridade e um outro. Ele, volta ao Mesmo, ao Nada. Pelo que, na morte
natural, como cancelamento da alteridade existente, não se pode encontrar consolo e nem reconciliação. Perante o/a morto/a, em si, não há
contentamento, pois ele/a pertence ao domínio do desaparecimento e da finitude.
Somente com o nosso retorno ao mundo ativo da história
dos seres humanos vivos, podemos nos reconciliar com a universalidade da vida. Quer
dizer, é na reconciliação com a vida, que nos nega consolo, que temos o lugar
onde poderemos encontrar a valorização do/a desaparecido/a. Contudo, não como
desaparecido/a, mas na expressão de sua universalidade vivida, no produto de
sua atividade, que se apresenta como legado, e na significação exemplificativa
de sua vida. Assim, ele/a viverá para sempre em nossa memória, ou seja, eterna
+ mente: eternamente. Essa é a casa para qual quem fez a transvivenciação se
muda, numa analogia com o diálogo inicial do filme mencionado na epígrafe deste texto, considerando, ademais, a
perspectiva hegeliana.
Essas introspecções me fazem lembrar que, neste
ano de 2024, já são contados dezesseis anos do desaparecimento do meu estimado
amigo João Francisco de Souza. Sociólogo, pensador da Educação (sobretudo, da Educação de Jovens e Adultos/Educação Popular), educador plural e aberto ao
livre debate, flexível na relação com o conhecimento, mas criterioso na sua produção
e no debate teórico. Na minha juventude, eu, como sujeito atuante/formador no âmbito dos movimentos sociais
e como dirigente de organização político-partidária de esquerda em Pernambuco, a
princípio, tomei contacto com João Francisco
através de seu livro Uma Pedagogia da Revolução. Posteriormente, e já no
tempo das minhas autocríticas de posições anteriores, estreitamos relações num
contexto peculiar: fora do Brasil, em Portugal. Eu fazendo o Doutorado e ele
realizando o seu Pós-doutoramento.
Nas conversas que tínhamos, algo sempre me
chamava a atenção quando surgia uma questão relativamente à qual o conhecimento
sobre ela era escasso: “é preciso aprofundar a discussão, é preciso aprofundar
a discussão”. Daí, infere-se uma rejeição à superficialidade e uma convocação à necessidade de estudo sistemático
sobre a realidade, combinadas, por outro lado, com o compromisso com as causas
progressistas. Este é, a meu ver, um dos legados do João Francisco. Se (re)visitarmos o seu contributo, se o desenvolvermos à luz da crítica analítica, o João continuará
presente, (re)vivendo, conforme a percepção de Maryse Condé, pois, seguindo a perspectiva do diálogo inicial do filme O
Enigma das Cartas, foi para essa casa que ele se mudou. A casa da memória.
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